Cortem a cauda do escorpião
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Por Clayton Nobre
A dona Sapa tinha a mania de
cantarolar por além do brejo, e, por causa disso, era famosa nas
redondezas. Também era famosa por sua beleza. Dotada de duas
longuíssimas pernas, que lhe permitiam deslocar-se mais de três
metros em um único passo, dona Sapa recebia aplausos e assobios de
quem quer que estivesse por perto. Mas não somente aplausos e
assobios. Naquele dia mesmo, dona Sapa usava no pescoço um colar de
conchas do mar colhidas pelo senhor Sapo-Boi.
Dona Sapa admirava o colar em
um lugar cuja distância do brejo era maior que a permitida pela mãe
Sapa. Fazer o quê? Dona Sapa tinha um problema com as pernas. Pulava
tanto que perdia a noção do quão longe se apartava. Esse lugar era
próximo da orla de um riacho.
Próximo da orla de um riacho,
o senhor Escorpião procurava ajuda. Estava aflito por causa de uma
tempestade que o afastou de sua moradia e dos outros escorpiões há
três dias. Graças à sua enorme e brilhante cauda, que tinha vida
própria e lhe concedia um poder jamais dado a qualquer animal
minúsculo e inútil das redondezas, o Escorpião ainda se mantinha
vivo. Pobre e esfaimado, perambulava entre as árvores e formigueiros
à procura de um animal caridoso e disposto a ajudá-lo a atravessar
o rio, enquanto a cauda roubava alimentos e utensílios úteis contra
a chuva e o vento.
Gripado, o Escorpião tinha
decidido descansar perto do toco de uma árvore, quando sentiu um
puxão vindo de trás. A cauda parecia aflita com algo, e tinha
razão. Ali perto, a enorme Sapa coaxava com notável beleza.
Repentinamente, o senhor Escorpião pôs-se de pé e deixou que seus
olhos admirassem a canção e a fisionomia do anfíbio. Depois, olhou
para o chão. Queria dar algo de presente. Viu uma tulipa.
O senhor Escorpião respirou
profundamente, segurou a flor na mão e fez uma cara de censura à
afoita cauda. Com um gesto encantador, ele levou o corpo ao chão, a
cintura em pé, o braço esquerdo no peito.
— Com
licença, formosa dama. Bom dia!
Essa história já existe e
muitos a conhecem. Foi contada por La Fontaine há mais de trezentos
anos. Também é de conhecimento comum que, como característica de
qualquer outra fábula, o final da história não é sempre o
esperado pelas crianças. Isto é, a dona Sapa vai morrer. Quebrar
essa peculiaridade da fábula seria descaracterizá-la e desrespeitar
a figura de La Fontaine. Então, não há chance. A Sapa será picada
ao levar o senhor Escorpião nas costas. E sucumbirá rio abaixo.
Esse texto foi criado, a
partir de uma adaptação feita para uma peça de teatro em Manaus e
no Rio de Janeiro*, com o intuito de criar possíveis argumentos que
salvariam dona Sapa. O primeiro deles trata-se de uma campanha com o
fito de ajudar escorpiões desempregados. Uma rã garantiu que a
pobreza generalizada da comunidade dos escorpiões era o motivo
principal da difusão de matanças no brejo. Graças a essa campanha,
o senhor Escorpião e sua família recebem, periodicamente, uma
porção de baratas francesinhas. Mas isso não contribuiu para que
dona Sapa fosse salva naquele dia depois da tormenta, afinal o senhor
Escorpião não sentia fome, tampouco sua cauda.
Havia ainda um lugar nos
arredores do brejo promovendo o adestramento de escorpiões. Quando a
empresa expandiu-se para depois do rio, a família do senhor
Escorpião foi a primeira a ser atendida. A instrução baseava-se em
uma série de atividades consistidas em alertar os escorpiões sobre
as conseqüências da criminalidade.
Ora, ninguém poderia acusar o
senhor Escorpião de criminoso. Suas intenções ao presentear a dona
Sapa com a tulipa eram as melhores possíveis. Que tolo, prestes a
voltar para casa depois de uma terrível tempestade, seria capaz de
afundar-se em um rio? O problema era a maldita cauda. Ela pica só
pelo prazer de picar e porque é a única coisa que sabe fazer com
dois dedões pontudos e afiados. Poucos no brejo tinham essa
percepção. E esses saíram às ruas em passeata, com cartazes que
diziam: “Cortem a cauda do escorpião”.
Ao atravessar a pior parte do
rio, o senhor Escorpião agarrou-se ao pescoço de dona Sapa com medo
de cair no rio. Ao mesmo tempo, tentava controlar a ansiosa e aflita
cauda. “Agora não, por favor”, pensou o senhor Escorpião. Mas
não adiantava. Aquilo era maior que a vontade desesperadora do
pequeno animal.
De repente, os olhos do senhor
Escorpião ficaram vermelhos. Sua face malvada olhou para a careca de
dona Sapa, levantou a sua cauda e...
— Mas senhor Escorpião, por
quê?
— Desculpe, bela dama, mas
faz parte da minha natureza.
*A
peça teatral citada – chamada Fábulas
em Manaus e Os
Contadores
no Rio de Janeiro – é do grupo Laboratório
de Investigação Teatral.
** Jornalista
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