O ocorrido
*
Por Pablo Uchoa
A avó entrou na sala
embrulhada no seu xale preto, passeou rapidamente por entre os
presentes e sentou-se na cadeira que lhe estava reservada. Trazia nas
mãos o eterno leque, o velho leque branco de estampas verdes, e
pôs-se a abanar o pescoço já suado. Apesar de tudo não chorava,
nem tinha raiva. Aceitava, apenas. Apenas o velho rosto de sempre.
Enrugado, caído – expressão alguma. Os óculos negros encobrindo
a íris negra da velha.
Não foi difícil para ela
reconhecer o neto. Bonito, o danado. Loiro, forte, os olhos verdes
agora cerrados, os lábios repuxados como num sorriso. Quantas vezes
o vira assim elegante? Bem penteado, barbeado, engomado num terno
ainda reluzente.
– Comportado...
Disse isto e o som saiu mudo,
longínquo. Mas bem que ela preferia o neto desleixado, os cabelos
sempre jogados, sua maneira peculiar de falar, as calças jeans
apertadas ao corpo, aquela mania dele de aprender piano com a avó. E
como era indisciplinado, pra que ficar na escala de dó se nós temos
também os sustenidos, ele dizia, mania de impaciência, lá vinha o
riso maroto.
Uma lágrima umedeceu-lhe as
pálpebras, ela agora chorava um choro de avó. Triste, arrastado –
experiente, e por que não dizer mesmo equilibrado? Só ela sabia o
motivo do ocorrido, era como se o trancafiasse. Revelá-lo seria
criar uma confusão dos diabos, problema de família, ih! minha
filha, coisa complicada é problema de família! Apalpou os bolsos do
vestido, escolheu dentro da cigarreira um toco pela metade – o
médico lhe contraindicara o fumo e o álcool – e levou-o à boca.
Fixou os olhos na parede amarelada do compartimento, num ponto para
onde as lembranças convergiam. Às vezes a fumaça do cigarro
passava à sua frente – o médico lhe contraindicara o fumo e o
álcool – e ia-se acomodar no teto ao lado do lustre – o médico
lhe contraindicara... – ora, o médico que fosse para os diabos!
Nem mais um minuto de
hipocrisia, agora chega! Desesperado, isso mesmo! Nem bem abrira a
porta e o menino já havia irrompido pelo apartamento da avó, aos
prantos – horrível! Umas manchas escuras ao redor dos olhos
desencontrados, o rosto em vermelho vivo, aquele hálito fedido de
cachaça. Bradando, gesticulando, vindo de lá pra cá o tempo todo.
Bastou deixá-lo sozinho um instantezinho de nada, ia buscar-lhe uma
xícara de café, imagine se alguém pode se acalmar naquele estado
sem um café... e escutar aquela pancada seca lá embaixo, no térreo.
Viera correndo, meu Deus, que bobagem o neto tinha feito desta vez,
nem um minuto e ele ainda estava vomitando aquela nonsense. Estancara
à porta da sala, hesitante em confirmar o ocorrido.
Deixara calmamente o pratinho
com a fatia de bolo em cima da mesa, sentara-se à beira do sofá. O
ocorrido? Que viessem dizer a ela. E, aliás, que avisassem também
os pais do moço, aqueles dois monstros. Monstros monstros monstros,
isso sim é que eles eram. Irresponsáveis. Inconsequentes. Não
tinham ideia do que representavam para o menino? Não sabiam da
dimensão da sua hipocrisia? Daquele casamento que até fedia de tão
podre. Pareciam duas crianças brigando, em casa uma baixaria, só a
guerra declarada faltava mesmo naquela espelunca, e sabe Deus se não
chegaram às vias de fato. Queriam se matar, se matassem no inferno,
grande favor fariam às crianças. Queriam explodir, explodissem,
bolas, mas poupassem pelo menos... um menino, ainda!
– Psicopat...! – proferiu
em voz alta, mas logo interrompeu a frase. Também não era o caso de
perder o controle. Não tinha mais idade pra isso. Acomodou-se na
desconfortável cadeira – numa hora dessas, também, quem há de se
importar, pensou consigo.
Juntou sobre as pernas as duas
mãos grandes – ah, nisso o neto tinha puxado a ela! Dedos grossos,
fortes – firmes, contudo leves. Mãos de pianista. Capazes de,
brincando, subir e descer as oitavas de um piano, e roubar-lhe desde
o toque mais meigo, um sonho, uma fuga, passos rápidos de uma
bailarina clássica, que encanto! – até o bramido mais irado das
notas graves. Tinha lá suas virtudes artísticas, o danado do
menino. Passava o dia encaramujado no quarto, escutando aquelas
músicas horríveis de gente nova, mas quando vinha, vinha com o
sorriso que formava a covinha – uma só – na ponta de um dos
lábios. Tomava as mãos brancas da avó, mãos frágeis, mãos de
velha, ela pensava. Até se veem as veias aí sob a pele alva, mas
ele dizia a senhora ainda vai viver muito mais que todo mundo nessa
família, sorria. Então pegava o violão, no seu tempo era feio
tocar violão, a senhora já imaginou que desperdício? E cantava
embalando umas melodias chorosas, de uns tempos pra cá tivera a
idéia de tocar violão. Depois ficavam a conversar assuntos de
antigamente, um moleque, vejam só, mas que facilidade para conversar
coisas de antigamente. E a velha fazia de conta que ainda era moça
no casarão pintado de amarelo, tetos altos, os azulejos lapidados e
pintados com adornos brancos e azuis, velho gosta de ser criança.
Como quando passava o dia espreitando a varanda que dava frente para
a rua de paralelepípedos meio toscos, um canteirinho separando as
duas vias de mão que iam dar na pracinha. E o povo indo e vindo, de
bicicleta ou a pé, “boas tarde, sinhá”, os matutos tiravam o
chapéu e curvavam-se em respeito, “quando é que seu doutô vem
por estas bandas de cá?” E ela respondia, por esses dias, seu Zé,
por esses dias, seu João, seu Raimundo, toda aquela gente que vinha
saber das notícias dela, uma princesinha de quê – metro de
altura? Vez ou outra vinha alguém lá de dentro dar notícia que
tinha cocada nas tábuas, era só esperar esfriar, cocada quente dá
dor de barriga, avisavam, mas ela nem dava conta. Abocanhava aquele
pedaço de céu tão branquinho, tá certo, não era um céu azul,
mas ela tinha certeza de que pelo menos nuvem era doce daquele jeito.
Quando a tarde anoitecesse lá ia ela brincar de boca-de-forno e
bandeirinha na praça mal iluminada, da chinela pra cá é o campo
dos vivos, pra lá é o morto, corria descalça, ria até ficar
cansada. A iluminação ficando mais fraca, fraquinha, ela apertava
os olhos pra ver, a lâmpada perdia força, ela apertava ainda mais
os dois risquinhos no rosto pálido. Tudo embaçado, as lâmpadas
deixando a paisagem meio fosca, escurecida, diluindo-se na realidade
amorfa, liquefeita, uma lágrima?
Passou as costas das mãos
pela face gélida, sem saber das lembranças se o tempo ou o choro as
tinham desfigurado, seus olhos deixavam ver alguma coisa?
Um gemido fatigado invadiu a
sala, chamou a atenção dos presentes. A mãe. Agora se lamenta,
choramingando agarrada àquele mau-caráter do marido. Igualzinho a
ela, os cínicos. Ficam aí repetindo "meu filhinho, meu
filhinho", como se isso fosse trazer de volta o menino. Deviam
ter pensado nisso antes, agora queriam o quê? Agora o ocorrido está
consumado, resta apenas desejar que os irmãos não tenham a mesma
sorte. O neto que leve com ele o motivo do ocorrido, poupe dos irmãos
mais essa desgraça.
Outra vez a velha ajeitou-se
no vestido, tirou dos bolsos um rosário, mas de súbito um alvoroço
iniciou-se entre o grupo. Um grito desesperado precipitou-se pelo
ambiente, olha a balbúrdia, ave Maria mãe de Deus, o Senhor é
convosco! Dessa vez tiveram que amparar a mãe pelos braços, a Santa
Cruz. O padre benzeu o corpo.
Era hora de partir o cortejo.
(*)
Cronista,
vive na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the
Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do
livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed.
Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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