“Minha
terra tem palmeiras, onde canta o sabiá”
(Gonçalves Dias)
*
Por Mara
Narciso
O
canto dos passarinhos me leva para longe, no tempo e no espaço.
Volto ao quintal dos meus avós de ouro Petronilho Narciso e Dona Du,
maravilhosos, que nunca olharam para mim com olhos de repreensão, só
de amor. E eu nunca fui uma menina quietinha, incluindo aí uma
subida ao telhado da minha casa aos três anos de idade. A morada dos
meus avós, próxima da Catedral, era uma casa imponente, para
abrigar os nove filhos do casal. Bem construída, altiva, subia-se
alguns degraus para alcançá-la. Tinha um jardim cheio de rosas e
dois coqueiros, um alpendre, seis quartos, duas salas grandes, um
imenso corredor, uma sala de banho e uma cozinha com uma mesa para
uma boa conversa.
O
paraíso das crianças era o quintal acimentado, com árvores
frutíferas, destacando-se o umbuzeiro e a goiabeira. Mas por lá, em
cada época brilharam o abacateiro, o pé de pinha (na safra eu era
recebida com uma pinha madurinha, que minha avó me segredava ser só
para mim), jabuticabeira, ameixeira e mangueira. O umbuzeiro ficava
no canto direito ao fundo. Tinha um tronco robusto, e havia se
deitado no chão. Essa particularidade o fazia montaria atraente para
as crianças. Quando era inverno, a árvore ficava despida dos galhos
até as pontas. Na primavera brotava um verde claro intenso. Então,
vinha a floração cheirosa e abelhas e passarinhos chegavam. Da
polinização aconteciam os frutos, que amadureciam grandes, com pele
lisa e polpa doce. Na alta safra, cobriam o chão, eram recolhidos e
lavados, enchendo várias bacias. No fim do dia, a família se
reunia em volta dos umbus, que nós chamávamos de imbus.
Aquelas
árvores encantadas atraiam os passarinhos, que eram majoritariamente
pardais. A caça com espingarda de chumbo era liberada,
e no mercado aves eram vendidas livremente. Parecia que a natureza
era inesgotável. As chuvas eram volumosas, tinha muita água, e os
frutos faziam lama. Ocupando grande parte do quintal havia o corador,
para alvejar roupas. Era amplo e alto, feito um palco. Nele nos
deitávamos para olhar o céu e reparar as nuvens. Nas tardes a
família maior, com tios e primos, se sentava para conversar. Era
quando as aves vinham descansar nas árvores. A algazarra nos dava
tranquilidade. A vida fluía normal.
Décadas
depois, quando fazia caminhadas numa área rural em Janaúba,
experimentei sensação semelhante. De manhã, os passarinhos
cantavam festejando o nascer do dia e no crepúsculo voltavam
cantando para casa. Tal lembrança me traz uma nostalgia boa.
Há
em Montes Claros concurso de canto de pássaros com premiações. Os
animais são reproduzidos em cativeiro e legalizados pelo cadastro e
normas do IBAMA. Cada expositor pode ter no máximo 30 aves. Os
animais prisioneiros têm uma caneleira colocada em uma de suas
pernas logo ao nascer. São numeradas e invioláveis. À medida que
vão crescendo, os que mostram habilidade especial são treinados.
Cantam apenas uma melodia, que precisa ter tamanho e variações
específicos para merecer a premiação. As disputas são divulgadas
entre os criadores de cada raça, e a contenda se dá ao ar livre. Os
animais podem custar até dez mil reais, no caso do trinca-ferro. São
tratados a pão-de-ló. Quando morre um campeão, o dono fina um
pouco, junto com ele. De um modo geral, os proprietários, grandes
apaixonados, sabem assobiar igual a sua ave, mas precisam fazer
silêncio total, deixando-a fazer o que sabe. No momento da disputa,
coloca-se um pássaro ao lado do outro, nas gaiolas, e se dá o
desafio, jamais um dueto.
Desde
que caçar animais silvestres se tornou crime inafiançável trouxe
de volta muitas espécies até então desaparecidas, inclusive a
rolinha do planalto em Botumirim, com seu canto peculiar, sumida por
75 anos. E assim, o canto das aves faz seu despertar festivo, remove
tristezas, traz saudades e esperança, em palmeiras, infelizmente, a
cada dia mais escassas.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
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