Literatura
e ideologia
*
Por Urariano Mota
Esta semana, fui atraído para a leitura de um texto a partir do título. Lá em cima se escrevia: “Arte, literatura e ideologia”, de Juliana de Albuquerque. Pensei: “o que virá disso?”. Confesso que a esperança de ler um pensamento substancioso se misturava ao pessimismo do que poderia vir. Mas depois da leitura, apesar de haver perdido todas as esperanças, o resultado foi estimulante.
Me falei: o que mesmo eu poderia responder ao texto de Juliana de Albuquerque, doutora pela University College Cork? Confesso que não sei até agora nem por onde comece. Então façamos como o popular nordestino diz: vamos começar pelo começo.
Isto. O artigo publicado na Folha de São Paulo de 23/04/2018 começa assim:
“Em um dos seus textos para o jornal inglês The Independent, o escritor britânico Howard Jacobson —autor de ‘A Questão Finkler’— lançou o questionamento de serem arte e literatura capazes de nos tornar mais humanos. Segundo ele, a leitura de textos como ‘Middlemarch’, romance da escritora inglesa George Eliot (1819-1880), seria capaz de facilitar a humanização dos seus leitores, não apenas pelos temas abordados no livro — uma narrativa sobre a vida cotidiana e o drama de diversas personagens numa cidade do interior da Inglaterra —, mas pela interação exigida entre o leitor e o texto.
O raciocínio por trás da afirmação é o de que o simples acesso à arte não é suficiente para nos tornar gente. Pois, mais importante do que o contato com a arte em profusão seria o tipo de relação desenvolvida com determinadas obras. Algumas vezes a paciência cultivada ao ler uma obra de linguagem mais sofisticada ou arcaica, outras vezes a atenção dispensada ao buscar o sentido do contexto e do drama das personagens é o que despertaria a necessidade de olhar para o mundo e para os outros indivíduos com tolerância”.
Logo observo que não resta claro no primeiro parágrafo do artigo se Howard Jacobson contestou, pôs em dúvida (“lançou o questionamento”) ou afirmou (“Middlemarch” seria capaz de facilitar) que a literatura nos humaniza.
Caminhemos
então pela estrada mais segura da dúvida, porque no segundo
parágrafo se escreve “O raciocínio por trás da afirmação é o
de que o simples acesso à arte não é suficiente para nos tornar
gente. Pois, mais importante do que o contato com a arte em profusão
seria o tipo de relação desenvolvida com determinadas obras”. De
fato, o simples acesso à obra de arte não é condição única de
humanização. Um bom livro é “apenas” uma ferramenta da
construção do mundo. Há outras, que falam mais de perto à nossa
construção humana, das relações domésticas às sociais e ao
tempo histórico que nos é imposto viver. No entanto, em meio a
tantas circunstâncias do azar e da sorte, o que seria de nós na
tempestade sem a bússola de um ótimo livro?
Mas o começo do texto foi só hors-d’oeuvre, acepipe, um petisco antes do prato principal que vem agora:
“... Há-se, também, de pensar sobre como é divulgada online a nossa herança cultural, muitas vezes a fazer da arte refém do posicionamento político, como se o cânone literário e artístico fosse mera plataforma para a exposição de afinidades ideológicas…
Na semana passada um amigo compartilhou a seguinte denúncia: ‘Quem pensa por slogans, não pensa: reproduz o mesmo. Quem cria poesia a partir de chavões ideológicos e palavras de ordem, não cria, os reproduz. A pura militância é endogâmica e endológica. Paradoxalmente conservadora’
Endológico, essa nova neologia, à parte, vejamos isto: “fazer da arte refém do posicionamento político, como se o cânone literário e artístico fosse mera plataforma para a exposição de afinidades ideológicas”. Ainda que cercada de boas intenções, essa é a velhíssima crítica dos que desejam a literatura aquém e além da política.
Compreendemos
o significado histórico imediato da restrição, mas não podemos
vê-la como uma condenação universal do “posicionamento
político” de um escritor. A velha crítica leva em conta o que se
chamou de “realismo socialista”, e se têm razão quanto à
avaliação dos erros da limitada e pobre estética que se pregava à
época, falta-lhe critério quando confunde alhos com bugalhos. Por
exemplo, atribuem a Máximo Górki o endosso da visão de Zdanov
para a literatura no tempo de Stalin. O que não é verdade. Como
bem escreveu José Carlos Ruy, em artigo publicado no Vermelho.
“O
‘realismo socialista’ tornou-se referência oficial - à revelia
de Gorki – no I Congresso de Escritores Soviéticos (1934), sob a
batuta de Alexei Zdanov, que se tornou desde então num verdadeiro
autocrata da cultura soviética. Naquele congresso, Zdanov fez um
discurso, baseado num escrito de Gorki, e usado amplamente como base
para a edificação da doutrina estética oficial do realismo
socialista”.
A esta altura, o exemplo de Graciliano Ramos é necessário. Ele, talvez o maior escritor brasileiro do século XX, um romancista político, um militante comunista até o fim da vida, jamais represou na escrita a revolta (ideológica!) contra o capitalismo. Mas possuía um asco irreprimível diante do realismo socialista, conforme se vê na biografia escrita por Dênis de Moraes, que citei no Vermelho.
A esta altura, o exemplo de Graciliano Ramos é necessário. Ele, talvez o maior escritor brasileiro do século XX, um romancista político, um militante comunista até o fim da vida, jamais represou na escrita a revolta (ideológica!) contra o capitalismo. Mas possuía um asco irreprimível diante do realismo socialista, conforme se vê na biografia escrita por Dênis de Moraes, que citei no Vermelho.
“– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista a Graciliano Ramos.
–
Até
o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que
não aceitei ler mais nada.
–
Qual
a principal objeção que o senhor faz?
–
Esse
troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos
as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o
narrador diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de
um romance?!
Tomei horror.
–
Não
seria possível purificar o estilo do realismo socialista?
–
Não
tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não
pelo estilo do panfleto.
Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:
–
Informe?
Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa
informe.”
Penso que defender a imprescindível liberdade da literatura, assim como de toda liberdade de pensamento, não é o mesmo que ver na militância socialista um muro levantado contra a criação. No artigo de Juliana de Albuquerque é citada a frase “Quem cria poesia a partir de chavões ideológicos e palavras de ordem, não cria, os reproduz”. Sério? Será mesmo assim? Então o que dizer da glosa de motes, presente em toda poesia de improviso nordestina, cuja excelência se vê até na lírica de Camões? Então o “Lula Livre”, o “Fora, Temer”, o “Lula é Inocente”, não poderiam nem podem gerar lindos contos, crônicas e poemas, porque trazem um vício do pecado original? Verdade? Notem o absurdo: todo escritor é livre para escrever o que quiser, desde que não elogie nem use as bandeiras em que acredita. É claro, se ele não tiver bandeiras de esquerda, tanto melhor, será o gênio da hora. Muito bem, viva o escritor anódino, sem mácula. O contrário do poeta ideal de Manuel Bandeira:
“Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.Vai um sujeito, Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”.
Acredito que a exigência da poética sem palavras da militância socialista se inscreve no jogo dos liberais à moda Trump. Eles clamam uma liberdade de “escola sem partido” para melhor expulsão do pensamento livre de Darwin e assemelhados. Ora, só orando sob a liberdade da interdição religiosa: libertar uma humanidade com exceções é a própria negação do que se afirma. Liberdade para quem? Para a manutenção do status quo.
Daí o paradoxo, onde se afirma: “a pura militância é
endogâmica e endológica. Paradoxalmente conservadora”.
Militância progressista conservadora... Sabem aquela do ladrão
que
corre à frente da turba e grita “pega o ladrão”? Então
entenderam. Por um critério tão rígido, que não respeita o
universal “nada do que é humano me é estranho”, perde-se a
imaginação do quanto palavras de ordem podem ser sínteses
transformáveis nos mais belos versos. Como no poema de Paul Éluard,
a poesia magnífica que virou panfleto em 1943, que se lançava de
avião sobre as cidades ocupadas por nazistas:
Liberdade
Nos meus cadernos de escola
Nesta
carteira nas árvores
Nas
areias e na neve
Escrevo
teu nome
Em toda página lida
Em
toda página branca
Pedra
sangue papel cinza
Escrevo
teu nome
Nas imagens redouradas
Na
armadura dos guerreiros
E
na coroa dos reis
Escrevo
teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos
ninhos e nas giestas
No
céu da minha infância
Escrevo
teu nome
Nas maravilhas das noites
No
pão branco da alvorada
Nas
estações enlaçadas
Escrevo
teu nome
Nos meus farrapos de azul
No
tanque sol que mofou
No
lago lua vivendo
Escrevo
teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas
asas dos passarinhos
E
no moinho das sombras
Escrevo
teu nome
Em cada sopro de aurora
Na
água do mar nos navios
Na
serrania demente
Escrevo
teu nome
Até na espuma das nuvens
No
suor das tempestades
Na
chuva insípida e espessa
Escrevo
teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos
sinos das sete cores
E
na física verdade
Escrevo
teu nome
Nas veredas acordadas
E
nos caminhos abertos
Nas
praças que regurgitam
Escrevo
teu nome
Na lâmpada que se acende
Na
lâmpada que se apaga
Em
minhas casas reunidas
Escrevo
teu nome
No fruto partido em dois de meu espelho e meu quarto
Na
cama concha vazia
Escrevo
teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em
suas orelhas fitas
Em
sua pata canhestra
Escrevo
teu nome
No trampolim desta porta
Nos
objetos familiares
Na
língua do fogo puro
Escrevo
teu nome
Em toda carne possuída
Na
fronte de meus amigos
Em
cada mão que se estende
Escrevo
teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos
lábios que estão atentos
Bem
acima do silêncio
Escrevo
teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em
meus faróis desabados
Nas
paredes do meu tédio
Escrevo
teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na
solidão despojada
E
nas escadas da morte
Escrevo
teu nome
Na saúde recobrada
No
perigo dissipado
Na
esperança sem memórias
Escrevo
teu nome
E ao poder de uma palavra
Recomeço
minha vida
Nasci
pra te conhecer
E
te chamar
Liberdade”
Eu teria poucas linhas mais a escrever sobre Literatura e Ideologia. Mas chegado a esse ponto da poesia de Éluard, fico sem palavras. O simples copiar a grandeza paralisa a gente. Então me recolho a pensar na minha insignificância.
Eu teria poucas linhas mais a escrever sobre Literatura e Ideologia. Mas chegado a esse ponto da poesia de Éluard, fico sem palavras. O simples copiar a grandeza paralisa a gente. Então me recolho a pensar na minha insignificância.
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Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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Também me sinto pequena.
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