Identidade eterna
A
melhor maneira de nos livrarmos de mágoas e dores emocionais é
fazermos delas temas para uma obra de arte: um poema, uma canção,
uma crônica, ou seja lá o que for. Além de acalmar as emoções,
se o que fizermos tiver valor artístico, pode, de quebra, ainda
render algum dinheirinho, o que não é nada mau, concordam? E em
casos extremos, nos assegurar uma espécie de “eternidade” do
nome, com nossas obras sendo procuradas e apreciadas por gerações e
gerações, séculos após a nossa morte.
É
aquela história que o povão, em sua instintiva sabedoria, tanto
conhece: “se lhe atirarem um limão azedo... faça com ele
deliciosa limonada”. As mais sensíveis composições do
cancioneiro popular em todo o mundo, por exemplo, nasceram de amores
fracassados, de ciúmes avassaladores e da chamada “dor de
cotovelo”.
Só
os masoquistas gostam de ficar remoendo o que os faz sofrer, sem que
tenham uma só válvula de escape para esse acúmulo de pressão
emocional. Vocês já notaram, por exemplo, o quanto alivia o fato de
desabafarmos com alguém quando nos sentimos arrasados com a perda de
um amor, ou com a traição de um amigo ou com qualquer outra
decepção sentimental?
Esses
desabafos, porém, também podem ser feitos com arte que, além de
não amolarem ninguém, tendem a encantar quem tiver contato com as
obras que forem produzidas nestas circunstâncias (se forem boas,
claro).
Os
melhores poemas de amor, por exemplo, foram escritos quando o poeta
se sentia amargurado e triste com o abandono da amada. São desse
tipo estes versos de encerramento do poema “Canção”, do poeta
paulista, de Caçapava, Ubiratan Rosa:
“Não,
não; não quero chorar,
vou
compor uma canção…
Canta
sempre, eternamente,
canta
tolo coração…
Canta
a dor que te dói tanto,
canta
a dor que te consome.
e
ao cantares do teu canto,
coração,
sossega e dorme...”
As
pessoas que sabem vislumbrar beleza até onde esta, objetivamente,
não exista (ou pareça não existir) são rotuladas, pelos
pessimistas e renitentes derrotistas e pelos onipresentes “idiotas
da objetividade”, de “utópicas”. Confesso que comungo dessa
utopia. Procuro sempre ver o lado positivo, nobre e belo da vida,
sem, contudo, ignorar ou negar a existência do oposto (e nem
poderia). Não ignoro, todavia, não para me “escandalizar”, mas
objetivando modificar para melhor o que é negativo e ruim.
O
antônimo da utopia é chamado de “distopia”. É o comportamento
de muitos (talvez, infelizmente, da maioria) que só enxergam o lado
perverso, horrendo, espantoso e feio da vida. São, no meu entender,
mais alienados do que os que veem apenas o aspecto positivo, belo e
nobre de tudo. E, na sua alienação, são infelizes, mesmo que
tenham a seu favor tudo o que alguém necessite para alcançar
felicidade.
Não
a alcançam, por não estarem predispostas a ela. Apostam no negativo
e este se impõe e se manifesta, com todo o vigor e perversidade, em
suas vidas amargas e cinzentas. O poeta Murilo Mendes fez uma
brincadeira, no poema “O utopista”, e caracterizou o distópico,
como sendo utópico. Escreveu:
“Ele
acredita que o chão é duro.
Que
todos os homens estão presos.
Que
há limites para a poesia.
Que
não há sorrisos nas crianças
nem
amor nas mulheres.
Que
só de pão vive o homem.
Que
não há um outro mundo”.
Quem
nutre estas crenças e se comporta dessa maneira, reitero, jamais
conseguirá ser feliz. Mesmo que o chão não seja macio, que nenhum
homem seja livre, que a poesia seja limitada, que as crianças sejam
sisudas, que as mulheres não saibam amar, que o homem viva somente
em função da comida e que, com a morte, tudo termine, não há mal
algum em pensar no oposto, se isso trouxer alegria e motivação para
viver. Como são dignos de pena os “distópicos”, imersos em seu
mundo árido e pedregoso, de trevas e de feiura!
Os
grandes artistas tendem a exercer influência decisiva (para o bem ou
para o mal) na formação da nossa personalidade e caráter,
permitindo-nos conhecer situações, comportamentos e circunstâncias
os mais diversos e extremos, sem que precisemos passar por essas
experiências pessoalmente. E quando algo análogo ao que tratam nos
ocorre, contamos com caminhos e alternativas já conhecidos para
sairmos de enrascadas ou para usufruirmos plenamente os episódios
benignos e favoráveis que surgirem.
Os
grandes artistas estabelecem, sobretudo, sua identidade, que refletem
nos personagens que criam. Generosos, nos ofertam a possibilidade de
libertação do espaço, do tempo e até da morte que, se não a
evitam (e não nos ensinam a evitar, pois é inevitável) sugerem
como aceitá-la serenamente, como realidade impossível de ser
mudada.
André
Malraux escreveu a respeito: “O grande artista (...) estabelece a
identidade eterna consigo mesmo. Pela maneira segundo a qual nos
mostra tal ato de Orestes ou Édipo, do príncipe Hamlet ou dos
irmãos Karamazov, ele nos torna próximos a esses destinos tão
afastados de nós no espaço e no tempo; torna-os fraternos e
reveladores para nós. Assim, alguns homens têm o grande privilégio,
essa parte divina, de encontrar no fundo deles mesmos, para nos
oferecerem, aquilo que nos liberta do espaço, do tempo e da morte”.
O
artista que consegue atrair nossa atenção, nos convencer, motivar
e, sobretudo, emocionar, conquista nossa irrestrita simpatia e até
cumplicidade, mesmo que jamais venhamos a conhecê-lo pessoalmente,
ou por viver em outros países (onde jamais pisaremos), ou por serem
inacessíveis por tantos outros motivos, ou por terem vivido em
outros tempos, muito antes de nascermos. O que não consegue... Tem
que se conformar com o ostracismo e a obscuridade.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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