Como
tornar-se um crítico musical – II
*
Por George Bernard Shaw
(Tradução
de Milton Ribeiro)
Vale
a pena assinalar aqui — eu não consigo resistir em mencionar isso
— que o editor geralmente acha que o crítico de música é um
inútil dentro do jornal. Ele sempre pensa que tem disponíveis
críticos que servem a todo e qualquer propósito. Ele tem certeza de
que o crítico cujos artigos são do interesse de pessoas que só
querem informação cultural ou se divertir é um impostor. Sim, o
editor tem certeza absoluta disso. Quando meus artigos sobre música
começaram a atrair um pouco de atenção, a piada na redação dava
conta do fato indiscutível de eu não saber nada sobre música.
Muitas vezes aconteceu de eu ser apresentado a admiradores que, ao
ouvirem minha resposta à pergunta: “O que você aprendeu para
poder escrever sobre música?” — ficavam decepcionados,
desiludidos, certos de meu nenhum mérito em razão de minha
explicação sincera e prosaica. Minha resposta: “Nada em especial,
a música é a forma de arte que eu mais conheço”.
Quando
a hipótese de minha total ignorância consolidou-se, mesmo assim eu
encontrava pessoas que candidamente pediam que eu admitisse
publicamente que meus conhecimentos de música não se estendiam a
aspectos técnicos. Eles tinham certeza de que eu apenas fazia
exercícios parvos de análise para impressionar leigos, mais ou
menos como um cavalo bem treinado impressiona o pessoal da cidade em
uma feira.
Um
mau crítico tem duas vantagens. Primeiro, se ele escreve para um
jornal diário e precisa de assunto, ele pode fugir de análise,
tornando-se útil e interessante coletando as últimas notícias
sobre os próximos eventos e o escândalo mais divertido sobre os
últimos. Em segundo lugar, sua incompetência só pode ser
comprovada comparando-se suas opiniões de um mês atrás com as de
hoje, coisa que ninguém vai se dar ao trabalho de fazer. Um
jornalista pode descrever de forma imponente A ou B, mas se você ler
a descrição feita um mês atrás para X ou Y, se ele não for
crítico, será quase a mesma.
Quando
ele tentar particularizar as qualidades especiais dos artistas que
ele analisa, você o encontrará louvando Sarasate e Paderewski pelas
mesmas características presentes na forma de tocar de seus
alunos…Mesmo que ele esteja louvando ou arrasando o artista, ele
sempre se ocupará de algumas das centenas de pontos que todos os
executantes têm em comum, e perderá os detalhes que fazem toda a
diferença entre a mediocridade e o gênio. Vai escolher ao acaso,
destacando quase sempre o que não distingue um artista do outro.
Eu
conheço isso por experiência própria. Há quase vinte anos, um
músico queria me ajudar a assumir um posto como crítico de música
em um jornal de Londres. Eu escrevia as críticas, ele assinava e me
repassava o dinheiro recebido sem descontos, contentando-se com o
fato de me auxiliar financeiramente. Eu era um jovem literato
desamparado. Ele ficava com a honra e a reputação decorrente de
meus artigos. A tais textos devo todo o meu conhecimento sobre as
características da má crítica musical. Não posso aqui transmitir
uma impressão adequada de seus deméritos sem ultrapassar os limites
do decoro. Eu ficava muito triste na época, sem saber o que
acontecia comigo. O fato é que eu não era maduro o suficiente para
entender que o que estava me torturando eram a culpa e a vergonha que
acompanham a ignorância e a incompetência.
O
jornal, com minha ajuda, morreu, e meus pecados estão enterrados com
ele. Mas eu ainda mantenho, em um esconderijo seguro, um conjunto dos
crimes de crítica que escrevi, mais ou menos como um assassino
mantém a faca manchada de sangue, sob a qual sua vítima caiu.
Sempre que sinto que estou muito presunçoso ou atribuindo-me uma
superioridade natural junto a um irmão mais novo no ofício, releio
algumas dessas coisas antigas. E vejam, eu não era deficiente nem na
habilidade literária, nem no conhecimento da música.
Eu
teria sido um crítico excelente para aquela idade, se soubesse como
fazê-lo. Não sabendo, meu conhecimento musical e poder de expressão
literária tornaram-me um ser muito mais nocivo do que se eu fosse um
mero jornalista. Quando eu retornei ao ofício de crítico, cerca de
dez anos depois, já era um cidadão (item muito importante) pelo
trabalho constante como autor, crítico de livros, palestrante e
político. Tudo isso não tinha nada a ver com a música, mas a
experiência fez toda a diferença. Eu fui enormemente ajudado como
crítico pelos meus estudos econômicos e minha prática política de
reformador social. Isto me deu uma inestimável compreensão das
condições comerciais a que a arte está sujeita.
Uma
das funções do crítico é a de agitar, a de promover reformas e
mudanças. E a menos que ele saiba o quanto as reformas irão custar,
e se elas valem esse custo, e quem terá que pagar a conta, e uma
dúzia de outras questões geralmente não incluídas em tratados
sobre harmonia, ele não fará nenhuma impressão efetiva nas pessoas
descansadas, conformadas e confortáveis com as situações. Na
verdade, ele nem saberá quem são os responsáveis. Mesmo os seus
vereditos artísticos serão muitas vezes destinados à pessoa
errada. Um gerente ou um artista não podem ser julgados de maneira
justa por qualquer crítico que não compreenda os movimentos
econômicos que envolvem a arte. Uma coisa é criar um ideal de
perfeição e reclamar que não são alcançados. Mas culpar os
indivíduos por não alcançá-lo quando a coisa é economicamente
inatingível é um absurdo. Por exemplo, o mau crítico culpa o
artista quando a culpa é do gerente, ou o gerente quando a culpa é
do público. Tais erros vão destruir metade da sua influência como
crítico. Todo o contraponto ou brilho literário no mundo não
salvará um crítico de erros deste tipo, a menos que ele entenda a
economia da arte.
O
salário de um crítico de música não é grande. Os proprietários
de jornais oferecem de uma a cinco libras por semana para críticas
de música, sendo o valor mais alto um caso excepcional, envolvendo a
entrega de umas duas mil palavras de prosa extra brilhante todas as
semanas. E, exceto na baixa temporada, o crítico deve passar a maior
parte de suas tardes e noites, de três a meia-noite, em salas de
concertos ou na ópera. Não preciso dizer que é praticamente
inviável obter os serviços de um crítico de música qualificado
nestes termos. É mais ou menos como obter um quilo de morangos
frescos em todos os dias do inverno. Consequentemente, para todas as
qualificações que sugeri, devo insistir que uma renda independente
para sustentá-lo é fundamental. Também é basilar a crença no
valor da crítica musical. E uma vez que a boa condição financeira
do crítico é tão improvável, tão completamente fora do alcance
do praticável, posso parar de pregar. Meu sermão terminaria, como
todos os sermões que tenho feito, em mais uma demonstração de como
nosso sistema econômico falha miseravelmente em proporcionar os
incentivos necessários à produção de resultados de primeira
linha.
.oOo.
NOTA
DO TRADUTOR: Este
artigo foi apresentado a mim por Augusto
Maurer.
Foi publicado primeiramente no Scottish Music Monthly em dezembro de
1894. Foi reimpresso no New York New Music Review em outubro de 1912
e em Bernard Shaw, How to become a Music Critic, ed. Dan H. Laurence
(Londres: Rupert Hart-Davis, 1960), pp. 1-6.
*
Dramaturgo,
romancista, contista, ensaísta e jornalista irlandês. Cofundador da
London School of Economics. Foi
também o autor de comédias satíricas de espírito irreverente e
inconformista. Ganhador
do Prêmio Nobel de Literatura de 1925.
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