As
línguas faladas no Acampamento Terra Livre
*
Por José Ribamar Bessa Freire
Cerca
de 3.000 índios acamparam de 23 a 27 de abril, em Brasília, na 15ª
edição do Acampamento Terra Livre (ATL). Realizaram reuniões,
rodas de conversas, plenárias e exposições no Memorial dos Povos
Indígenas. Peregrinaram pelo Judiciário, Legislativo e Executivo e
marcharam pela Esplanada dos Ministérios que tingiram de vermelho
para simbolizar o sangue derramado no ininterrupto genocídio.
Cantaram, dançaram, rezaram. Clamaram e reclamaram. No encerramento,
projetaram a laser no Congresso Nacional, a principal reivindicação:
“Demarcação Já” e “Terra Livre”.
No
entanto, quem viu os noticiários da TV não tomou conhecimento da
maior mobilização anual organizada pela Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) com apoio de órgãos indigenistas e
socioambientais. A mídia, que minimizou ou ignorou olimpicamente o
fato, estava concentrada no filho de Kate e William, nascido em
Londres com 3,8 kg, às 11h01 como nos informou o deslumbrado
correspondente da TV Globo, Pedro Vedova, com a precisão milimétrica
do minuto. A expressão de fascínio do outro William, o Bonner,
no Jornal
Nacional,
era melosamente patética. Ele aparentava uma surpreendente
intimidade com a coroa britânica.
Durante
toda a semana, os jornais televisivos narcotizaram o telespectador
brasileiro, discutindo com inusitada euforia os prováveis nomes do
recém-nascido indicados nas casas de aposta de Londres, mas não
informaram sobre os índios que acamparam na capital do país e que
além da demarcação exigiam punição para os assassinos de
Marielle. Havia ali representantes de mais de 150 povos, falantes de
dezenas de línguas. Quase todos bilíngues, usaram o português como
língua interétnica, mas em alguns casos cada grupo dialogava
internamente em sua própria língua, algumas com pouco falantes, em
perigo de extinção. Outras já decepadas, vítimas do glotocídio.
No
batel de Cabral
A
cobertura do ATL, que não foi feita, podia ser um gancho para a
mídia defender a rica diversidade linguística do país, constituída
não apenas pelas diferentes línguas ameríndias presentes nos
rituais, nas danças, nas rezas, nos cantos e nas cerimônias
celebrados quase sempre à noite, mas também pela variedade indígena
do português de contato usado nas plenárias, uma das quais – o
português xinguano falado por diferentes grupos étnico-linguísticos
do Alto Xingu – teve seu perfil sociolinguístico traçado pela
pesquisadora Charlotte Emmerich.
Nada
disso foi mostrado. A língua parece Deus, está em todo lugar, mas
ninguém vê, nem mesmo aqueles que têm fé. Os telejornais, focados
no neto do príncipe Charles, ignoram o plurilinguismo do Brasil
observado pelas caravelas que aqui aportaram naquele longínquo abril
de 1500, segundo Pero Vaz de Caminha em sua célebre carta.
O
escrivão da frota relata que o almirante Pedro Alvares Cabral, ao
avistar gente na praia, enviou na frente uma pequena embarcação com
batedores para estabelecerem contatos iniciais. A escolha de quem
devia ir no batel se baseou em critérios de competência
linguística: Nicolau Coelho, que havia vivido na Índia e falava o
hindi; Gaspar da Gama, que dominava o árabe e outros idiomas; um
marujo da Guiné que conhecia bem algumas línguas africanas e um
escravo da Angola, competente em quimbundo.
Os
portugueses poliglotas saltam na praia, falam as línguas que sabem,
os índios respondem nas suas e ninguém entende bulhufas. Através
de gestos, convidam alguns homens e mulheres a irem com eles até a
nau capitânia. Lá, os índios reparam um crucifixo de ouro no peito
do Cabral e alguns adornos de prata e apontam para a terra firme. Foi
o suficiente para todos acharem que eles estavam indicando a
existência de muito metal precioso naquela região. Mas Caminha,
cauteloso, adverte que eles podiam estar apenas manifestando desejo
de levar com eles aqueles adornos.
Sem
rei nem lei
A
falta de comunicação prevaleceu no território que é hoje o
Brasil, onde eram faladas no séc. XVI cerca de 1.300 línguas, mais
de 1.100 delas silenciadas em quinhentos anos, vítimas do
preconceito do colonizador, como pode ser observado no discurso de
Pero Magalhães Gandavo, que confunde língua com escrita, ao afirmar
que “a
língua tupinambá não tem as letras f, l e r,
cousas dignas de espanto porque assí não tem fé, nem lei, nem rei
e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente”.
Outra,
no entanto, foi a impressão de Frei Vicente do Salvador em
sua História
do Brasil: 1500-1627.
Para ele, as línguas indígenas eram “mui
compendiosas”, possuidoras
de “alguns
vocábulos mais abundantes do que o nosso português”,
porque “nós
a todos os irmãos chamamos com um único nome e ao tio também”,
enquanto eles, ao irmão mais velho chamam de uma maneira, aos outros
de outra. O tio paterno tem um nome e o tio materno outro e “alguns
vocábulos só usam as fêmeas e outros só os machos”.
Tal
consideração coincide com a fala da guarani Sandra Benites, mestre
em antropologia, que participou na UERJ da mesa de encerramento do
curso “Educação Descolonizadora”. Existem duas palavras em
guarani para designar irmão: uma para o irmão maior e outra para o
menor. Mas o homem designa suas irmãs mulheres com uma terceira
palavra - (t)xereindy -
que significa algo assim como “luz
de minha vida”:
-
Sem irmã, o homem não existe, vive perdido na escuridão – disse
Sandra, acrescentando que o termo usado pela irmã para chamar seu
irmão maior é xe
kywy,
que numa tradução livre e poética significa “aquele
que está sempre ao meu lado”.
De acordo com o modelo defendido por Gandavo, os falantes de
português não seriam, então, capazes de estabelecer relações
fraternas como os guarani.
Na
Terra Livre
De
Cabral ao Jornal Nacional, durante mais de cinco séculos, o Brasil
continua incapaz de valorizar sua diversidade linguística. Dessa
forma, a mídia não nos permitiu ouvir as vozes de dezenas de
mulheres que se revezaram ao microfone na plenária realizada na
tenda principal do Acampamento Terra Livre, nem tampouco os discursos
dos caciques e dos jovens indígenas que tiveram um espaço próprio
para se expressar. Preferiu reproduzir os berros de um fajuto arauto
inglês anunciando o nascimento em Londres do bisneto da rainha.
O
documento final aprovado pelos índios no ATL lança um clamor contra
a invasão das terras que milenarmente sempre souberam proteger e
cuidar e contra o genocídio que continua. Condena “a falência da
política indigenista” no atual cenário que é “o mais agressivo
contra os direitos indígenas desde a redemocratização do país”.
Denuncia a paralisação das demarcações das terras indígenas”
assim como “a anulação dos nossos direitos territoriais”. Acusa
ainda “o governo ilegítimo de Michel Temer” por haver negociado
os direitos indígenas com a bancada ruralista incentivando a
violência.
Entre
as reivindicações mais urgentes, o documento lista a demarcação e
proteção de todas as terras indígenas, a imediata retirada dos
invasores das terras já demarcadas, “o arquivamento de todas as
iniciativas legislativas que atentam contra os nossos povos e
territórios”, o atendimento básico à saúde, o reconhecimento da
“natureza pluriétnica do Estado Brasileiro consagrado pela
Constituição Federal de 1988” e o cumprimento “dos tratados
internacionais assinado pelo Brasil, de modo especial a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Embora
o documento não traga nenhuma referência explícita ao direito de
uso de suas próprias línguas, a questão fica contemplada na
reivindicação sobre o cumprimento “da política de educação
escolar indígena diferenciada e com qualidade, tal como foi
formulada nas propostas da II Conferência Nacional de Educação
Indígena que contemplam os territórios etnoeducacionais”.
A
cobertura da mídia tem mais a ver com o complexo de vira-lata do que
com critérios do que é ou deixa de ser notícia.
P.S.
– No dia da abertura do ATL, em Brasília, e do nascimento de Louis
Arthur Charles, em Londres, se encerrava no Rio às 21h27 o curso
“Por uma Educação Descolonizadora” coordenado pela doutora
Danielle Bastos Lopes, professora do CAp-UERJ, com mesa formada por
Sandra Benites, Renato Nogueira e este locutor que vos fala, cuja
exposição foi aqui resumida.
* Jornalista e historiador.
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