A
boneca de pano
*
Por Clevane Pessoa de Araújo Lopes
O
retalho de fino veludo preto, na banca das “Casas Regente”,
tradicional loja de tecidos em “Juiz de Fora” , atraiu a moça.
Pensou em cortá-lo em retângulos e neles aplicar flores de fita
varicor, o que estava em voga naqueles anos sessenta. Gostava de
trabalhos manuais e de criar peças para o seu enxoval. As claras
mãos, muito finas, destacaram-se no negro. O anel bonito, que
terminava numa pérola encaixada em garras de ouro branco, faiscou.
Presente de Pete, com quem namorava “firme”, como diziam então.
Acabou
mandando embrulhar o retalho, pagou e, como sempre, foi à sorveteria
da loja, onde os fregueses podiam servir-se gratuitamente de um
delicioso sorvete, mais cremoso que o de qualquer outro lugar.
Professorinha
recém-nomeada, foi dar aulas em um grupo escolar. Muito ocupada
fazendo todo o material didático, já que as escolas estaduais da
época possuíam-no muito pouco – confeccionava desde as cadernetas
de notas mensais, feitas de cartolina dobradas e decoradas com seus
caprichosos desenhos, às provas mimeografadas... Mapas, quadro de
pregas para ensino de unidades, dezenas, centenas... Flanelógrafos,
corpo humano, fauna e flora! Tudo feito em casa, na grande maioria,
mais o plano dos testes... Nas datas comemorativas, dezenas de
pequenos brindes e enfeites, alusivos:
dia da páscoa, em abril, dia das mães em maio, dias de festas
juninas, dia dos pais em agosto, dias da árvore e da entrada da
primavera em setembro, dias das crianças e de N. Sra. Aparecida,
padroeira do Brasil, em outubro, dia da bandeira em novembro e, em
dezembro, as festas de fim de ano, com suas formaturas ou despedidas.
Haja papel-cartão, papel-cetim, papel-de-seda, papel fantasia, papel
kraft! Haja isopor, cola, aquarela e lápis cera e de cor! Os dedos,
machucados de tanto usar tesoura, o rosto com pontos luminosos de
brocal, purpurina, as unhas estragando-se.
Mas
o prazer de lecionar, agradar à criançada, ver os resultados,
mesclado à criatividade que recebera como dom, sobrepujava em muito
aquela canseira toda.
Também
ganhava presentes, em certas datas, mas, principalmente, no seu
aniversário e no dia do professor. Alguns, feitos a capricho, pelas
mães, como panos de prato, toalhinhas de crochê. Outros, terríveis,
certos bibelôs de porcelana branca, com traços informes e riscos
dourados. Alguns insuportáveis perfumes baratos, brincos de plástico
vagabundo. Os simplórios ou baratos, como sabonetes. Bichinhos de
pelúcia, bombons, cosméticos, principalmente se a mãe era uma
“revendedora Avon”.
E
broa com carinho, empadinhas sem azeitonas... De vez em quando, havia
um pai dono de padaria, uma prendada tia, avó ou mãe confeiteira,
doceira, costureira, florista... e, falando em flores, elas vinham
aos montes, as de jardins e horta,
as arrancadas pelo caminho ou roubadas de vizinhos...
Voltava
para casa carregada com esses troféus do carinho que lhe dedicavam,
feliz da vida. Uma vez, um aluno quis dar a ela algo inusitado:
-
Um gato-coelho, fessora.
-
Que é isso, Serginho?
-
Um gato com rabo de coelho, todo branco, que pula como coelho.
A
mãe dela adorava animais e, acompanhada do garoto, foi à casa dele
após a aula. A mãe de Sérgio achou graça porque o animal – uma
linda aberração – era a paixão da criança e da família.-
Olha, Eva, ele gosta muito mesmo da senhora, porque em casa é muito
ciumento do bichinho.
Sérgio,
nos dias de início das aulas, chorava tanto, que, literalmente,
ficava com a camisa do uniforme encharcada. Chorava pelos olhos, pelo
nariz, pela boca. Às vezes, pela bexiga. Eva fora tão carinhosa,
que o conquistara “para sempre”.
-
Fessora, eu amo você para sempre!
-
Que bom, Serginho, eu também, mas agora, vá para o recreio merendar
e brincar...
Se
deixasse, ele ficaria olhando-a, sem ir ao pátio com os
coleguinhas...
Ele
chegou com um sorriso de melancia no rosto moreno, olhos cheios de
estrelinha:
-
Olha tia, meu gato-coelho!
Ou
então, um coelho-gato. O menino tinha razão. Um mistério de
cruzamento. Deixou-o contentíssimo, aliviado, quando declinou do
presente, com uma desculpa.
-
Ah, Serginho, não vou poder levá-lo, porque na minha casa temos
dois cachorros e ele vai correr perigo...
Num
feriado, arrumando seus guardados, encontrou o retalho, já
retalhado, em cinco retângulos menores. Teve a ideia de fazer uma
boneca e foi costurando, com ponto caseado miúdo, braços, pernas,
tronco.
Braços
e pernas, após enrolar cada tecido sobre si mesmo, como rocambole,
os primeiros mais apertados para ficarem mais finos e não precisarem
de enchimento. Já as pernas, tronco e rosto, receberam espuma de
nylon por dentro.
A
cabecinha fez com um pedaço de cetim preto. Olhos de botões, boca e
nariz bordados, cabelos de lã preta em mil trancinhas, vestido
xadrez vermelho “vichy”, avental marinho.Fez
por fazer, talvez para os filhos que tivesse, uma garotinha ou
garotinho – afinal, estavam descobrindo que os meninos também
podem gostar de brincar de pais. Mas, pronta a Maria Pretinha, pensou
nos “filhos diários e resolveu levar a boneca para a escola.
A
Maria ficou na bolsa enorme do tipo que as professoras usam para
caber toda a tralha didática. De repente, Lu e Marcos saíram aos
tapas, sem ouvi-la quando pediu que parassem com a encrenca. Aí,
lembrou-se da boneca e tirou-a, expondo-a aos olhos curiosos da
criançada, que dela se aproximou. Quando os briguentos perceberam
que não tinham plateia, também se chegaram. Aí, quase sem mover a
boca, como fazem os ventríloquos, mas deixando o som formar-se
naturalmente, admoestou Lu e Marcos e então começou a incrível
história de amor, empatia imediata, entre os pequenos e Maria
Pretinha.
A
partir daí, tudo que queria, pedia através da boneca. Num dia em
que esqueceu de colocá-la na bolsa, deixando-a pendurada no varal,
para tomar um solzinho, foi uma decepção geral. Aninha, de
sobrenome alemão e incríveis olhos azuis, passou toda a tarde a
olhar para o lugar, sobre a escrivaninha, onde Maria Pretinha ficava
sentada, costas apoiadas em livros. Eva notou que, após as perguntas
iniciais, o resto da turma, compreendendo sua explicação de que
ontem chovera dentro da grande bolsa de palha e, se não secasse, a
boneca iria mofar, aquietou-se, participando das atividades do dia.
Aninha, não: ora suspirava, ora enchia os belos olhinhos de
lágrimas, olhando de vez em quando para o lugar sem bonequinha.
Após
a aula final, a garotinha a esperou:
-
“Fessora”, amanhã a senhora jura que traz a Maria Pretinha?
-
Claro, Aninha! Quando eu chegar em casa, vou contar a ela que você
sentiu sua falta...
-
Eu fiquei morrendo de saudades dela...
-
“Vivendo de saudade”, pensou Eva, fazendo um carinho nos cachos
cor-de-mel e preparando-se para ir embora: não podia perder o
ônibus, pois Pete saía do trabalho e corria para esperá-la no
ponto final, de onde iam caminhando de mãos dadas, lentamente, ele
falando de uma tal CLT, ser ou não optante da lei e ela contando dos
aluninhos do pré-primário.
No
fim do ano, quando as aulas iam encerrar-se, ela sabia que não ia
voltar porque, casando-se, ia mudar de cidade. Fez uma festinha para
sua classe, entregou a “Aninha Cachinhos de Ouro”, como chamava a
sensível menina, um pacote embrulhado em papel fantasia. Havia
levado um presentinho para cada um dos alunos, deixando-a por último.
Aí, abraçando-a, disse-lhe ao ouvido:
-
Só abra quando chegar em casa, porque seu presente é especial, eu
não tinha para todo mundo.
Aninha
entendeu, surpresa, mas com medo de acreditar, correu para casa e no
caminho rasgou um pedaço do embrulho... Acertara: os pés de Maria
Pretinha apareceram fazendo seu coração bater mais forte.
Eva,
parece que adivinhou ao lhe dar o presente; só teve dois filhos,
homens, que, ensinados pelo avô, tinham horror a bonecas, “coisa
de menina, mãe”... Mas Eva nunca esqueceu Aninha, nem esta a sua
Maria Preta...
*
Escritora e poetisa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário