Tempos de boêmia
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Por Pedro J. Bondaczuk
O
termo boêmia traz consigo, de imediato, a ideia de dissolução, de
irresponsabilidade, de vícios, de noites de embriaguez e, por
consequência, de dias de ócio, para curar a ressaca. Durante muito
tempo, essa expressão foi utilizada para rotular indivíduos que não
eram, digamos, "muito responsáveis". Pessoas sem regras ou
disciplina, incapazes de parar em qualquer emprego ou de constituir e
sustentar uma família.
Ainda
hoje a palavra tem esse sentido pejorativo. Mas nem todos os boêmios
dedicam-se o tempo todo a noitadas alegres, regadas a álcool. Pelo
menos no meu caso e do nosso grupo de rapazes, em São Caetano do
Sul, em princípios dos anos 60, não acontecia dessa forma. Todos
trabalhávamos, estudávamos e nos preparávamos com afinco para a
vida.
Reuníamo-nos
nas noites de sexta-feira, após o trabalho, em um bar da Rua Santa
Catarina, que pertencia a um amigo nosso, em um cômodo reservado,
para colocar a conversa em dia. Era a nossa forma de lazer. Ali,
entre um uísque e outro, acompanhado de petiscos, (ou entre um chope
e outro, no verão), varávamos a madrugada conversando (e algumas
vezes "urrando"), já que no sábado, ninguém da nossa
turma teria que trabalhar.
Os
temas eram extremamente ecléticos. Versavam sobre todos os assuntos
em voga, já que tínhamos de tudo entre nós: estudantes de
medicina, filósofos recém formados, professores, jornalistas,
advogados, futuros cientistas políticos, ex-jogadores profissionais
de futebol, detetives de polícia, etc.
Não
me recordo de ninguém que se excedesse na bebida e de nenhuma
desavença séria, apesar do "calor" com que alguns
assuntos eram debatidos aos gritos e até palavrões. Principalmente
os que se referiam à política brasileira.
A
despeito da crise --- o Brasil sempre conviveu com alguma --- o País
vivia um período de euforia, após a gestão de Juscelino
Kubitschek, com a sua arrancada para o desenvolvimento. Estava na
moda a pregação das chamadas "reformas de base" --- as
mesmíssimas que o ex-presidente Fernando Henrique se propõe a
implantar no seu governo, na década de 90 --- que na ocasião eram
vistas como "ideias subversivas, comunistas" por parte de
determinados setores de direita, mas que também não conseguiu.
Tolice,
claro, mas esses retrógrados não se davam conta do seu atraso e
ignorância. Ou cinismo, oportunismo, ou sabe-se lá o que mais. Uma
vez por mês, nosso grupo fazia serenata, autorizado pela polícia,
em algum bairro da cidade. Eu apenas acompanhava, já que cantar
nunca foi meu talento. Violência era coisa rara. Hoje, seria
impossível isso. Quem se atrever, corre o risco de voltar nu para
casa, se voltar. Será, fatalmente, assaltado.
Muitos
dos meus poemas mais caros foram debatidos e emendados nesse bar da
Rua Santa Catarina, hoje demolido para dar lugar a um espigão. Nem
gosto de passar por ali, pois quando o faço, me dá um aperto no
coração.
Um
pedaço de mim ficou perdido nesse tempo específico e nesse local
exato. Aprendi muitíssimo com os jovens brilhantes que participavam
dessas noitadas, hoje profissionais e políticos vencedores, de
renome nacional. O grupo também teve seus "desaparecidos"
durante a ditadura que viria alguns anos depois.
Estas
reminiscências associo-as ao poema "Minha Boêmia", de
Arthur Rimbaud, que diz:
"Eu
caminhava, as mãos nos bolsos desgastados;
também
meu paletó fazia-se ideal;
ia
sob o céu, Musa! e era o amante leal!
Ah
que esplêndido amor que então foi sonhado!
Meus
únicos calções tinham um grande furo.
---
Pequeno Polegar que entre rimas discursa,
via
minha taverna às margens da Grande Ursa,
no
escuro!
Sentado
eu escutava, à beira dos caminhos,
as
meigas noites de setembro; e tinha o vinho
do
orvalho sobre a fronte --- ó tônico perfeito!
E
ali rimas tecia entre vultos fantásticos,
com
a minha lira --- meu sapato e seus elásticos
que
eu fazia vibrar, tendo um pé contra o peito".
Nossa
boêmia era mais inocente do que a do poeta. E provavelmente mais
produtiva, profícua e inteligente. Não tinha esse ranço
decadentista de cabarés, de dissolução e de pecado. Não se
associava à embriaguez, a não ser aquela que atinge jovens
idealistas dispostos a lutar por aquilo em que acreditam: a das
ideias. Parecia mais um cenáculo, onde irmãos de fé arquitetavam
um futuro, sem que sequer desconfiassem que estavam fazendo isso.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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