A
sombra da mesma cruz
* Por Rubem Costa
Se não me falha a memória, foi em 1930, numa manhã ensolarada de abril, ao fim da missa de domingo, que a surpresa abissal irrompeu. Burburinho. De simples rumorejo cochichante a meio tom, o espanto de repente se alteou em voz potente, desandando a proclamar pela cidade o grande escândalo — “o padre vai casar”.
Drummond não havia ainda
publicado o seu célebre “Sai pedra de meu caminho”, mas, por
certo, tivesse, então, conhecido a tempestade, por certo, de lança
em riste, teria saído a campo em favor do bombardeado pároco,
porque, na sua instância de poeta, bem sabia que “skandalon” em
grego significa a pedra que faz tropeçar, aquilo que,
metaforicamente, prejudica alguém de caminhar em paz pela vida. O
que se via, era uma agressão à dignidade do ser, como se casar
fosse pecado, deslize de homem em busca de sua felicidade.
Entanto, Indiferentes à
essência da palavra e à extensão do gesto, as comadres inflamadas
com a novidade do altar, parolavam sem parar, impiedosamente, pelo
prazer de atenazar a vida, atassalhando a honra, enquanto os homens
alcoviteiros, fazendo coro com a intriga, apimentavam o caldo com
piadas indigestas à moda de Bocage. Os meninos, ora os meninos,
entre os quais eu curioso, ficavam espreitando as conversas de
esquina com ar de gente grande, rindo das chalaças de botequim que
mal entendiam, mas repetiam deturpadas pelas ruas. Destas falas
impudentes, a mais atrevida e irresponsável era aquela que,
investindo contra a moral e o respeito humano, dizia que o Botafogo
estava em chamas porque o padre mandara a brasa.
Era uma alusão direta ao
pároco da igreja Sagrado Coração de Jesus, situada no bairro, onde
ele sempre pontuara os seus atos com extrema piedade cristã. Quando,
ingênuo, contei em casa a piada, minha mãe, que era protestante,
olhou-me com censura amável e pacientemente, em sua sabedoria
prudente de mulher que via o mundo pela janela da vida, disse-me que
o trocadilho era infame e o que faziam era pior, desprezível, pois
condenar um homem, só porque, sendo sacerdote, desejava casar-se,
era gesto insano de cabeça doente. — “Padre Gióia, meu filho,
acrescentou ela, é humano e como qualquer ser tem o direito de
escolher o caminho de sua felicidade.”
Naquele instante estava
declinando o nome do cidadão respeitável que, numa manhã de abril,
na igreja repleta, logo após o “ite missa est” pronunciado em
latim, anunciara a sua decisão de afastar-se da paróquia para
convolar matrimônio. Aquela fora a última celebração. Enfatizou,
deixava a batina pelo amor a uma mulher, sem deixar, todavia, de amar
a Deus. Uma declaração de sabor eucarístico porque importava dizer
que, ainda que fora daquela nave, continuaria a viver à sombra do
mesmo madeiro da crucificação. Cruz de oblação e desprendimento.
Cruz que lhe animou a existência e edificou sua alma. Cruz que
marcou os passos de Catarina de Sena e tracejou o caminho para a nova
busca de Lutero. Cruz que vem dos séculos multiplicando o pão
espiritual do homem crente. Cruz de afeto e Cruz de amor. E assim
foi, posto que, sob o madeiro, o jovem pároco mudou apenas de
templo. Tornou-se pastor evangélico. No púlpito da igreja Batista,
onde passou a exercitar suas largas virtudes de orador sacro, ainda
pude ver (levado pelas mãos de meus pais) que continuava a renovar,
na hora da comunhão que dava aos fiéis professos, o mesmo ato
litúrgico da consagração, repetindo aproximadamente, quase
idênticas, as palavras que pronunciava junto da ara católica: — a
frase de Cristo perante o pão e o vinho — “fazei isto em minha
memória!” Não estou aqui a desenvolver apologia de facção
religiosa, eu que, embora creia num poder Criador, não me agrego
mais a qualquer tipo de seita.
Estou apenas, como
reminiscência de infância, prefigurando o perfil de um homem de
coragem que, na tangência das vicissitudes, sofreu, sonhou e amou na
vida. Uma homenagem que lhe presto, envolvido ainda na roupagem do
menino que aprendeu no colo da mãe que o apanágio da vida é a
faculdade que tem o homem de dirigir os próprios passos. E Rafael
Gióia Martins recebeu de Deus essa dádiva. Logo que deixou a
batina, montou o lar na mesma residência onde sempre morara em
Campinas. E assim, numa casa humilde da rua Saldanha Marinho, frente
ao jardim da Beneficência da Portuguesa, veio ao mundo o filho
primogênito, Gióia Júnior, que haveria de se tornar um dos maiores
poeta cristão do Brasil. Dele, duas décadas depois, o pai
recordando diz: “a poesia de meu filho fala de Deus, fala de Jesus
no esplendor de sua divindade e no contágio benéfico de sua missão.
É uma poesia de unção evangélica, poesia de oração, de exegese,
de meditação e asceticismo. Ela traz em sua essência o traço da
luta, dessa pugna ingente que caracteriza o desbravador, o pioneiro,
o missionário.”
E o filho, aos 20 anos de
idade, bardo completo, orgulhoso da grandeza do genitor, assim dele
falava num poema comovente de fé e coragem em que traduz o fragor da
luta e o amor divino:
“Venho
da guerra... O gladiador ousado/ não conhece a derrota, sangra, cai/
mas levanta-se além, revigorado/ venho da luta ingente de meu pai./
Queira Deus que essa fibra de gigantes/ seja o cerne de minha fronte
ousada /seja a força de minha nutrição./ Vede que são iguais
nossos semblantes:/ Vem chegando meu pai da derrubada/ E eu vou
partindo para a plantação.”
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Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras
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