Forçados à cooperação
O
homem ainda tem longo caminho a percorrer até entender, no fundo da
sua alma, que seu papel no mundo é o de ser parte de um todo e que
sua vida será um fracasso caso se volte exclusivamente para o
individual, em detrimento do coletivo. Não se trata de abrir mão da
individualidade, mas de colocá-la, espontaneamente, a serviço do
grupo.
Mantive,
por muitos anos, em minha mesa de trabalho, quando era editor do
“Correio Popular”, uma gravura que ilustra bem a necessidade de
cooperação. Ela mostrava, de um lado, dois burrinhos atados a um
poste por uma corda, tendo à frente de cada um, um monte de feno.
Quando cada qual buscava chegar ao seu, ao mesmo tempo, não
conseguia. Enrolavam-se, tentavam, mas sempre em vão.
Do
outro lado, porém, a gravura mostrava o momento em que os dois
muares iam para um mesmo lado, juntos. Nesse caso, a corda permitia
que chegassem primeiro ao monte de feno da direita (que devoravam com
apetite e satisfação), e depois ao da esquerda, em que se fartavam
com o mesmo prazer.
Pena
que não tenho mais essa gravura para me inspirar. Não sei que fim
ela levou, onde foi parar. Quando saí do jornal, não me lembro se a
deixei na redação, como lembrança dos vinte anos que lá passei,
ou se a trouxe para casa e a perdi no meio das tantas bugigangas que
acumulo, sem grande (ou nenhuma) ordem. Vi-a em várias salas de
chefes de seção, depois disso.
Mas
podemos ilustrar essa necessidade de cooperação com algo melhor,
com o que ocorre no nosso corpo. Somos integrados por bilhões, quiçá
trilhões, de células, cada uma com sua individualidade e vida
próprias e com respectiva função. Como qualquer ser vivo (que, de
fato, são), nascem, crescem, se reproduzem e morrem.
Todavia,
cada qual executa sua tarefa, integrada ao todo, nunca em oposição
a ele, o que garante a saúde e a sobrevivência do organismo inteiro
e, por consequência, a própria. No entanto, se alguma célula
eventualmente se desgarrar e, subitamente, sem nenhum aviso, passar a
atacar as demais e a devorá-las, o corpo todo ficará desarranjado.
Adoecerá gravemente. E se a agressora não for contida, ou
imediatamente eliminada, o conjunto morrerá inexoravelmente. E, com
sua morte, os bilhões, quiçá trilhões de células morrerão
também, inclusive, claro, a que deflagrou o processo destrutivo.
Assim
são os homens. Atuando de forma egoística, o que conseguem é,
apenas, “adoecer” o corpo social. E se o “remédio” não for
logo aplicado, ou não se mostrar eficaz, todo o organismo haverá de
se extinguir fatalmente (no caso, a humanidade).
Este
terceto com que o poeta Augusto dos Anjos encerra o soneto “Último
credo” ilustra bem essa necessidade de um sentido coletivo na
atuação de cada indivíduo que compõe a nossa espécie:
“Creio,
como o filósofo mais crente,
na
generalidade decrescente
com
que a substância cósmica evolui…
Creio,
perante a evolução imensa,
que
o homem universal de amanhã vença
o
homem particular que eu ontem fui!”.
Só
se (ou quando) esta vitória ocorrer, o ser humano poderá se
considerar, de fato, racional. Até lá... Notem que não há
particularidades no universo. Tudo e todos somos partes de uma
unidade infinitamente maior, absoluta, de dimensões inconcebíveis
para a pífia e limitadíssima mente humana.
Nossas
alegrias, por exemplo, somam-se à de bilhões de outras pessoas,
mundo afora e, quiçá, à de um número até não dimensionável de
outros seres, caso haja vida inteligente em outras partes do Cosmo
(provavelmente, há). O mesmo raciocínio vale para nossas dores,
tristezas, frustrações, amores, inquietações etc.etc.etc.
Nós
e nossos pensamentos, sentimentos e aspirações não somos originais
e muitíssimo menos únicos. Daí ser incompreensível o egoísmo, o
culto fanático e insensato de alguns ao “próprio umbigo”, como
se fossem o centro do universo e a própria razão dele e tudo que
ele contém existirem. Óbvio, não são.
Relutamos
em entender e assumir nosso papel, que é mínimo, ínfimo, ridículo
no concerto universal, embora nossa intuição nos indique o quão
pequeno ele é. Queiram ou não, pois, os empedernidos egoístas,
todos somos obrigados a cooperar uns com os outros, para manter esse
arremedo de civilização e até para assegurar nossa sobrevivência.
Cada
qual desempenha um papel, de acordo com suas aptidões e talentos: o
médico, o pedreiro, o engenheiro, o jornalista, o lixeiro, o padeiro
etc.etc.etc. Imaginem se não fosse assim? Seria o caos instalado.
Imperaria a lei das selvas. A despeito de todas as imperfeições,
desmandos e até aberrações, bem ou mal, é esse espírito
cooperativo (raramente espontâneo) que mantém coesas as sociedades
e lhes confere um toque mínimo de organização.
É
certo que essa cooperação poderia (e deveria) ser mais ampla, se
não irrestrita e absoluta, envolvendo todos os povos. Pena que não
é. Nunca entendi essa divisão do mundo por países (e surgem novos,
amiúde, como que brotados do nada), por causa de conceitos tolos,
como poder, soberania, etnia, tradições religiosas etc.
Sinto-me,
porém, cidadão do mundo, o que de fato sou, habitante de um planeta
pequeno e de ínfima importância na ordem universal. Morris West
colocou as seguintes e lúcidas palavras na boca de um personagem do
seu romance “A Torre de Babel”: “Somos forçados, mesmo contra
vontade, a cooperar na sanidade mútua. Por que não levamos esta
cooperação mais longe? Por que o nós e o eles continuam a
acreditar que outras coisas intangíveis são necessárias para nossa
identidade: soberania, posse deste ou daquele santuário, ocupação
de uns metros de terra estéril, tradições religiosas ou
étnicas...Somos ainda crianças brigando por uma maçã, chorando
uns e outros, enquanto a maçã apodrece no pé”.
Por
que não cooperamos mais, uns com os outros, se esse é o único
caminho da eficiência dos nossos atos? Por que agimos como os
burrinhos que buscam chegar ao mesmo tempo ao respectivo monte de
feno por conta própria, apesar da corda que os prende ao poste não
permitir isso? Por que sermos a célula louca e descontrolada, que
tenta devorar as vizinhas e parceiras, numa atitude doentia e
suicida? Sim, por que?
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário