Na própria carne
O
sofrimento – físico, mental, moral, psicológico, afetivo ou seja
lá de qual natureza for – é o que há de pior para qualquer ser
vivo e, lógica e especificamente, para o homem. Infelizmente, no
entanto, é o que mais existe mundo afora. Todos, rigorosamente
todos, passamos, em algum momento de nossas vidas, por essas
dolorosas experiências. O que varia é a constância, e não somente
ela, mas a causa, a duração, a natureza e a intensidade dessa coisa
ruim que, não raro, após cessar, produz traumas muitas vezes
incuráveis. Ou seja, mais sofrimentos, posto que de natureza
diversa.
Não
há uma única pessoa considerada “normal” (embora o conceito de
normalidade seja muito elástico, vago e indefinido) que não busque
fugir de todas as formas dos sofrimentos. Certo? Creio que isso chega
a ser até redundante, de tão óbvio que é.
Aquele
chato, que põe reparo em tudo e dá pitaco em qualquer assunto só
para contrariar e contradizer, pode afirmar (e certamente afirmará):
“Há os que, não somente não fogem do sofrimento, como até se
deliciam com ele e o procuram”. É verdade. A referência, aqui,
claro, é aos masoquistas. Estes, todavia, não são normais (no
senso comum de normalidade). Padecem de um desvio, de uma tara, de
ostensiva anormalidade, que contraria, até, um dos instintos básicos
dos seres vivos: o de autopreservação.
O
normal é que as pessoas evitem o sofrimento. E quando não é
possível evitar, busquem diminuir e curar logo as causas para
eliminá-lo. A única função da medicina, por exemplo, é a de
curar doenças e, dessa forma, acabar com os sofrimentos orgânicos.
A
indústria farmacêutica desenvolveu uma série de analgésicos, que
muitas vezes, se usados inadequadamente, atacam os sintomas sem
atacar as causas, especificamente para livrar as pessoas da dor. Ou
seja, do sofrimento. Mascaram, dessa forma, as doenças (mas não
quero e nem vou generalizar).
Para
intervenções mais radicais, as cirúrgicas, foram desenvolvidos os
anestésicos, tremendo avanço para cirurgias mais humanas e seguras,
para
que
não sejam tão dolorosas (e perigosas pois podem levar os pacientes
até ao estado de choque) como eram até antes da sua invenção.
Em
resumo, nosso empenho cotidiano, individual ou coletivo, é no
sentido de evitar o sofrimento, de acabar com ele depois de instalado
ou de, quando isso não for possível, diminuí-lo e torná-lo
suportável. As pessoas mais sensíveis sofrem não apenas com seus
problemas individuais, mas com os coletivos também. E os idealistas
veem o mundo como um lugar de sofrimento, um “vale de lágrimas”,
e por isso se empenham na utopia de construir realidades ideais, nas
quais ninguém sofra, por nenhum motivo. Claro que é impossível.
Daí o termo “utopia” para suas projeções.
Relendo,
porém, por estes dias, um livro de Anatole France (pseudônimo do
escritor francês Anatole François Thibault, ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura de 1921, pelo conjunto de sua obra), se não me
engano o romance “O manequim de vime”, li, surpreso, a seguinte
declaração que anotei: “O sofrimento! Que divino desconhecido!
Devemos-lhe tudo o que é bom em nós, tudo o que dá valor à vida;
devemos-lhe a compaixão, devemos-lhe a coragem, devemos-lhe todas as
virtudes. A terra não passa de um grão de areia no deserto infinito
dos mundos. Mas se o sofrimento se limita à terra, ela é maior que
o resto do universo”.
Fiquei
pasmo! Nunca antes havia lido algo que me soasse a uma apologia do
sofrimento, como esse trecho me parece ser. Quando se lê coisas
desse tipo, notadamente em obras de ficção, é preciso muito
cuidado. É necessário, antes de tudo, contextualizar a declaração.
Muitas
vezes um escritor coloca na boca de um personagem conceitos
diametralmente opostos aos seus. Portanto, fico sem saber se, no
caso, esse era o verdadeiro pensamento de Anatole France ou não.
Provavelmente não era. E justo ele, que era um sujeito realista, com
ideais de esquerda, cético e não dado a misticismos (os místicos é
que pregam a purificação da alma mediante penitências e
autoflagelações, ou seja, sofrimento físico)!
Sem
nenhuma certeza, fico com a desconfiança de que essa era a opinião
do “personagem” e não do seu inventor. Não posso garantir nem
uma coisa e nem outra. Eu, se fosse o autor da afirmação, de alguma
forma, esclareceria, na sequência, que não penso dessa forma.
Mas... cada escritor tem sua maneira de proceder.
É
verdade que o sofrimento enseja o surgimento de preciosas virtudes,
como a compaixão e a coragem, como ressalta o personagem de Anatole
France. . Mas, da mesma forma que analisei os que “gostam” de
sofrer, ou seja os masoquistas, devo citar o outro extremo, o dos que
entram em êxtase, em delírio, em estado de supremo gozo quando
infligem sofrimentos aos outros, no caso, os sádicos.
Estes
têm compaixão? Ora, ora, ora. Para quem tem essa tara, quanto mais
os outros sofrem, mais se deliciam. E sequer importa para eles se
esse sofrimento é causado por eles, ou por outros ou por qualquer
causa alheia à ação humana.
Quanto
à coragem... Nem todos (e nem sempre) encaram o sofrimento de forma
corajosa e confiante. Há os que são mais sensíveis. Há os que se
acovardam e findam por sofrer com a simples ideia da possibilidade de
passarem por um ou por vários sofrimentos. Conheço inúmeras
pessoas assim e, provavelmente, o leitor também conhece.
Anatole
France, portanto, (ou seu personagem, como convencionei que iria
considerar), declarou uma tremenda bobagem, que serve mais para
justificação da tara de um renitente masoquista, do que para
expressar a ideia de uma pessoa normal (reitero, no senso comum de
normalidade). Da minha parte, detesto sofrimentos (não importa de
que tipo e intensidade) e, sempre que está ao meu alcance, procuro
minorar, e jamais infligi-lo aos outros. E você, paciente leitor?
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Enfrento o mais rápido possível, para ficar livre dele, se possível for. Quando é possível evitá-lo, é o que faço. Também evito prejudicar quem quer que seja.E digo sobre os anestesistas: esses homens (e mulheres, especificamente minha amiga anestesista, Margarida Batista) maravilhosos e suas drogas salvadoras.
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