Caminhos e caminhantes
Gostaria
que todas as pessoas fossem iguais, pelo menos no que considero
essencial, ou seja, em posses, direitos e aptidões. Evidentemente,
não são. Há desníveis profundíssimos e absurdos entre a minoria
privilegiada (e nunca consegui entender a razão desse privilégio) e
a maioria que vegeta na miséria, sem ter, nem ao menos, o que comer.
“É a realidade”, dizem os cínicos e os omissos, do alto da sua
arrogância e burrice.
Há,
é verdade, uma niveladora implacável que, mais cedo ou mais tarde,
iguala a todos no mesmíssimo destino: a morte. Tentam, porém,
estabelecer diferenças até aí. Os que gozaram de todas as regalias
possíveis e imagináveis são sepultados com pompas e
circunstâncias, em mausoléus caríssimos, que são verdadeiros
palácios para os indigentes.
Já
estes... Não raro, não têm sequer sepultura. Às vezes têm os
corpos doados para estudos em faculdades de Medicina. Ou quando são
enterrados, o são em alguma gaveta provisória nos cemitérios que
as têm ou em covas rasas, logo esquecidas onde ficam e de quem são.
Todavia, não importa. Tanto os milionários quanto os mendigos
cumprem o derradeiro ritual da natureza: “és pó e ao pó
retornarás”.
Levamos
vidas tão desiguais que nem parecemos espécimes da mesma espécie.
Até não faz muito, era perigoso tocar nesse assunto. Logo lhe
sapecavam a pecha de “comunista” e davam a essa palavra conotação
de horror, como se quem defendesse a isonomia de direitos e deveres
entre as pessoas fosse um monstro sanguinário e vil, uma aberração,
um mal a ser combatido e extirpado. Ou estou exagerando?
O
pitoresco é que justamente os que seriam os maiores beneficiados com
a implantação de um comunismo genuíno (não me refiro àquela
caricatura que havia na extinta União Soviética e que ainda há na
China, em Cuba e na Coréia do Norte), eram os que mais o combatiam.
Os miseráveis da Terra vegetam em tamanha indigência, que aquilo
que mais querem é pelo menos um prato de comida por dia, um abrigo
seguro e alguma diversão. Sequer cogitam em qualquer tipo de
igualdade de direitos e deveres.
Embora
muitos achassem que eu fosse comunista, nunca o fui. E não por temor
de represálias, de prisão, torturas e até mesmo da morte.
Informado como sou e conhecedor da natureza humana, sempre tive plena
convicção da impraticabilidade dessa utopia. Em teoria é, sem
dúvida, ideal tentador e maravilhoso. Na prática, porém, não
resistiria a um único dia, após se tentar implantá-la, sem que
fosse, de imediato, corrompida e descaracterizada.
Escrevo
esta crônica ainda sob o impacto daquelas imagens dantescas que
presenciei, em noite recente, à saída do trabalho: a de um
andrajoso indigente revirando o lixo de um famoso restaurante aqui de
Campinas, em busca do que comer.
E
o que me abalou ainda mais foi o fato de milhares de pessoas
transitarem pela calçada, passando pelo pobre infeliz como se fosse
menos até do que um animal doméstico, um cachorro ou um gato, mas
simples objeto inanimado, um poste talvez, ou, quem sabe, um muro.
Tentei
parar meu carro para ajudar o infeliz, meu irmão de espécie, mas
quem diz que consegui? Um coro de irritantes buzinas (mesmo sendo à
noite) alertou-me que burgueses omissos e inconscientes queriam
passar para seguir suas vidinhas medíocres, inúteis e
inconscientes. Não sei, portanto, que fim levou aquele pobre infeliz
que “garimpava” seu jantar em infecta lata de lixo. Não duvido
nada que tenha sido preso, por “perturbação da ordem pública”.
Sempre
que toco no assunto, sou, invariavelmente, confrontado com o
questionamento, feito em tom arrogante e agressivo: “você
partilharia seus bens com algum indigente”? Sinceramente? A
resposta é sim, mas sob uma condição. A de que todos,
absolutamente todos, não importa onde morem, o cargo que ocupem ou a
fortuna que tenham, fizessem o mesmo. Por que? Porque se defendo
igualdade de direitos, deveres e aptidões para “todos”, seria
incoerente se apenas eu recebesse tratamento diferenciado.
O
fato é que essas vidas tão desiguais continuarão dessa mesma forma
que estão agora, década após década, século após século,
milênio após milênio, isso se a humanidade não for extinta antes,
ou se não se extinguir por sua própria ação, em encarniçada e
furiosa batalha entre os que têm tudo e querem muito mais e os que
são tratados de modo inferior, até, que cachorros e gatos. Por
isso, amargurado, tenho que admitir que Johann Wolfgang von Goethe
estava cobertíssimo de razão quando constatou:“Nem todos os
caminhos são para todos os caminhantes”. Só aduziria um sincero
“infelizmente”.
Boa
leitura!
O
Editor.
Excelente proposição, e ainda melhor resposta às provocações.
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