Sobre
as ondas
* Por
Xavier Marques
A
madrugada, muito fria e ventosa, parecia ainda noite alta, noite sem
estrelas, sem uma cintilação, uma faísca sequer desses fogos
pálidos das alvoradas.
A
Baía de Todos os Santos marulhava negra, atroadora, debaixo de uma
cerração cor de ferro, com borbolhões de vagas grossas como
golfadas de óleo.
Ao
redor, as faixas de terra das ilhas e costas, fechadas em cortinas de
vapor, tornavam mais denegrida a orla do horizonte. O vento, contínuo
e possante, soprava dentre leste e sul e arrancava tais ecos ao mar,
fazia-o mugir com uma voz tão longa e cavernosa que punha a
imaginação em delírio e causaria horror a quem quer que não
tivesse o hábito de ouvi-lo.
A
embarcação que por esse crepúsculo de inverno velejava para a
costa ia, apesar de frágil, sem perigo, vento à popa, com três
homens resolutos e fortes, surpreendidos pelo rebojo em plena baía.
Por maior que fosse a ilusão de ermo e soledade no meio do golfo
escuro, eles sabiam que outras embarcações e outros marinheiros
andavam por ali e além a lutar com o nevoeiro, cortando esse mesmo
mar estuante e cerrado. É que naqueles fins de junho, às mesmas
horas álgidas do alvorecer, as lanchas baleeiras saíam dos portos
da ilha, enquanto a ela voltavam os pescadores do alto, aqueles que,
mais temerários, não se arreceavam de aguaceiro ou ventania, e
curtiam noitadas por cima das águas bulhentas com o mesmo
sangue-frio com que lançavam as linhas, em manhãs de bonança.
Os
três homens, imperturbáveis, sem temor de sinistro, deixavam correr
a canoa, esperando a claridade matinal, que vinha, enfim, se
anunciando por uns veios de jaspe no compacto negror de cima.
Um
deles, todavia, se achava menos calmo que os outros. Não sendo
pescador de profissão, tinha por isso mais pressa em franquear esse
espaço cheio de estertores, murado de sombras que ressumavam geada.
Seus olhos, mal acostumados à privação de luz, arregalavam-se para
as trevas a doer; por vezes, galgando a canoa um cachão d'água, ele
sentia passar-lhe pelos dedos colados à borda como que a língua
melosa e voraz de um molosso. Cerrava as pálpebras e em silêncio,
como os outros, ia escutando o mugir das ondas que se batiam ao longe
de encontro a baixios, recifes e praias, produzindo aquela tremenda
ressonância.
Pouco
a pouco a escuridão se fez penumbra e esta se foi esgarçando a mais
e a mais. Um como luar violáceo transcoou-se difusamente na
cerração. A essa luz macilenta os pescadores empalidecidos
entreolharam-se como se viessem do fundo de uma solapa. O mais velho
estava à popa, encorujado e mudo, numa antiga japona de baeta, com
um arrocho de cordel por baixo da barba a segurar-lhe à cabeça o
chapéu de pindoba alcatroado. No rosto de cor azeitonada, gordo e
rebarbativo, fixava-se uma expressão dúbia de sono, indiferença ou
regelo; as pálpebras grossas caíam-lhe frequentemente em cochilos,
e os lábios remexiam-se num incessante ruminar.
Perto
dele, sentado na pá de um remo, sobre o monte de redes, o seu moço
de pescaria, coberto com um deplorável baetão vermelho, esfregava
as mãos calosas, levava-as à cara de tez mulata e apertava os
queixos, soprando e assobiando para aquecer.
Quando
este se voltou para a banco mais avante, junto ao mastro da vela, deu
com o rosto do terceiro, e neste rosto de tom fulvo um olhar duro e
hostil que parecia desafiá-lo. Com os dentes cerrados e uns
estremecimentos nervosos ao longo da face larga, onde apenas se
pintava um buço, Pedro dava com efeito ares ameaçadores e de vez em
quando sinais de impaciência. Seu busto reto e sólido vestia-se tão
somente de uma camisa de flanela alvacenta e muito justa, que lhe
desenhava a arca do peito; no lugar da gola uma cava funda deixava
emergir um pescoço taurino e a cabeça redonda com o cabelo a voar,
em caracóis.
Quereria
também zombar do rigor do tempo?
Fazendo
a si mesmo esta pergunta, o moço de pescaria baixou os olhos.
Dir-se-ia humilhado à vista do altivo camarada. E quis dissimular o
seu velho ressentimento com alguma chalaça a propósito dos
chuveiros noturnos que os haviam encharcado a todos. Não achou
palavras. O sorriso que tentara não passou de uma careta. E mudou
logo de posição, a relembrar-se de cousas passadas, havia meses.
Era
maior caso da sua vida solteira e sem norte. Como esquecê-lo?...
Certa
manhã caminhava a esmo pelo baixio de noroeste, acolá; na Ponta das
Baleias. Era de vazante a maré e o sol despontava. Uma rapariga em
trajos de banho descia a passos de garça para a praia. Ele viu-a
mergulhar as pernas, tímida e ardilosa, com espasmos de frio, e ir
pouco a pouco se escondendo n'água, até perder o medo e lançar-se
de bruços naquele seio prateado e líquido que já resplandecia aos
clarões matutinos. Seguiu. Mais adiante parou e volveu os olhos
atrás. Ela continuava aos abraços, abraços violentos com o mar; e
o mar, fresco e túmido, lhe sorria como um velho enganador. Ainda
uma vez marchou e tornou a voltar-se para ver. A moça avançava
agora, destemida; avançou e meteu-se n'água até a garganta. - Oh!
temeridade! Quando ele quis avisá-la já ela agitava os braços e
gritava. Estava no perau, atolada, agarrada pelos pés. Certo disso
apressou-se, correu, lançou-se a nado e foi cingi-la fortemente
pelos ombros, no momento em que o perau, só dando-a mais um palmo,
lhe fazia beber a grandes sorvos. Alcançou a praia; mas a banhista,
quase sem sentidas, deixou-se cair mole na areia. Carregou-a até à
porta de casa bem satisfeito com essa inesperada fortuna de
salva-vidas. Viram-no passar, e acudiram com louvores ao seu ato. A
moça era filha de uma ilhoa com um João Português. Os pais lhe
agradeceram a boa ação, e ela mais tarde, tornando a si,
sorriu-lhe. Chamavam lhe Mercês... E foi tudo.
Ah!
mas porque havia de ser ele e não outro que salvasse?... Dali por
diante era a linda boca a lhe mostrar o lindo sorriso, e ele a pensar
que tivera nas mãos, que tocara e sentira a polpa fina daquele corpo
branco e torneado... Foi um suplício longo, suplício de dúvidas,
de desejos, de escrúpulos. Enfim, uma farsa cega da alma pôde mais
que os seus escrúpulos e dia houve em que supôs ter nas malhas da
rede a sua mais rica pescaria. “Engano, Sambeiro!” Engano, sim,
porque logo a ambição cresceu no peito de outro homem, que lha
roubou deslealmente... Esse homem, esse ambicioso chamava-se Pedro
Carpinteiro e estava ali sentado, bem perto dele, no banco da vela...
Desfechando
um murro na borda da canoa, como para desentorpecer a mão, Zacarias
Sambeiro tornou a olhar o ladrão da sua pescaria. Tinha-lhe medo?
Não, mil vezes não. Mas Pedro, carpinteiro de profissão, tinha
amigos; tinha casa e fartura; ele, Sambeiro, era sozinho no mundo e
morava num quarto de aluguel do Convento, aquele casarão de cem
moradores, assim chamado porque abrigava, lá na Ponta das Baleias,
os que só tinham de seu o sol e a lua. Pedro vestia-se de boa ganga,
e assim ia às missas, com pesos castelhanos a tinir nas algibeiras;
ele, Zacarias, vestia umas calças velhas com remendos e os bolsos
furados. Pedro, para encurtar razões, era filho desse velho André
que vinha ali à popa da canoa, pescador de estima, que entrava até
na sala do senhor cirurgião e conversava com o vigário e o
governador da ilha.
-
Mas foi uma senhora traição - disse consigo, vendo a canoa pender
quase alagada... Traição foi, e se este mar lhe faz outra... não
era bem feita?
Nesse
momento o olhar do velho, muito sisudo e severo, cravou-se-lhe no
rosto; e ele tornou a falar, sempre consigo:
-
Cala-te, Sambeiro, que a gente também paga pelos maus pensamentos...
(O
Sargento Pedro,
capítulo I, 1910)
*
Jornalista,
político, romancista, poeta, biógrafo e ensaísta.
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