Na
Porta do Céu
* Por
Mara
Narciso
Aos
seis anos de idade, em 1961, eu fazia o então chamado curso
pré-primário no Colégio Imaculada Conceição, tradicional colégio
de freiras em Montes Claros. As irmãs belgas eram as proprietárias,
mas havia freiras brasileiras, algumas delas, pessoas carentes que
não tinham outro modo de ascensão social que não fosse a vida
religiosa. Muitas tinham apenas o curso primário e davam aulas de
religião. Eu era pobre, mas os colegas vinham de famílias
abastadas, de fazendeiros e outros próceres da comunidade
montes-clarense.
Meu
pai tinha trabalhado como contador técnico em uma representação de
automóveis Volkswagen e depois foi proprietário de uma loja de
roupas. As minhas colegas estudavam música no conservatório,
tocavam piano e moravam em casas de dois andares no centro da cidade,
com enormes quintais com pomares que ocupavam todo o quarteirão,
além da piscina. Eu as frequentava, mas elas não iam ao nosso
pequeno apartamento (coisa rara na época), onde morávamos e
pagávamos aluguel.
Tínhamos
aulas de religião no primeiro horário e rezávamos todos os dias.
As irmãs traziam cartazes com passagens da Bíblia. Havia um quadro
sobre o dilúvio, que muito nos amedrontava, e outro, também
apavorante, que representava o inferno. Eu gostava muito de estudar,
mas não gostava tanto do colégio, porque me sentia pouco a vontade,
porém permaneci nessa escola por dez anos.
Havia
missa para os alunos diversas vezes por semana. Íamos à capela
rezar e entoar músicas religiosas depois do recreio. Na entrada da
igrejinha havia uma cuba de água benta, na qual molhávamos a ponta
dos dedos e nos persignávamos com tal líquido. Eu me sentia muito
contrita, e rezava com muita fé. Havia sessões de confissão e de
comunhão para os alunos mais velhos.
Mas,
neste ano específico, eu participei de duas peças de teatro
organizadas pelas professoras. Ah, como eu amava o teatro! Ficava
como louca quando tinha oportunidade de ver as marionetes, ou alguma
peça levada por pessoas de fora do colégio.
Um
dia resolveram fazer uma representação com os alunos. Eu era
considerada desinibida e fui escalada para ser o Lobo-Mau na história
de Chapeuzinho Vermelho. A roupa marrom com rabo e tudo me foi
emprestada pela escola. É claro que, tão menina, não sabia
representar, mas consegui chegar ao final.
A
formatura no mês de dezembro foi uma grande festa. Ensaiamos muitas
vezes a peça: “Na Porta do Céu”. Muitos personagens desfilariam
suas vidas e seriam avaliados por São Pedro, que, pra lá de
austero, analisaria cada história antes de assinar o passe livre.
Quase não deu para participar do grande dia, porque tive catapora,
mas me recuperei a tempo.
No
transcorrer da peça, algumas pessoas já tinham entrado no céu, e
eu estava na fila tentando fazer o mesmo. São Pedro, cujo papel foi
representado pelo Senhor Paulo César Gonçalves de Almeida (tenho
fotos) que é o Digníssimo Reitor da UNIMONTES, permanecia postado
à porta, bradava palavras de ordem, e depois de uma breve conversa
com o interessado, o mandava entrar. Estava demorando, e eu era a
última pessoa da fila. Quando chegou a minha vez, todos tinham
entrado: meninas com suas bonecas, mulheres, homens e anjos e eu lá
fora esperando. Então São Pedro me olhou severamente e disse:
-
Não, você não pode entrar no céu, Rugelina, porque está com o
rosto pintado de “rouge”. Quem usa maquiagem fica fora do céu!
As
cortinas se fecharam debaixo de uma salva de palmas.
Depois, novamente se
abriram para que os alunos, meninos e meninas de seis e sete anos
pudessem receber os aplausos da plateia,
os nossos pais em sua maioria.
No
meu cantinho no palco, como única criança excluída de entrar no
céu, eu acabei de aprender valores e arbitrariedades. Afinal, mais
importante do que o interior das pessoas, a parte externa
determinava, e determina quem vai entrar onde.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Que pena que essa lição, tão dura e definitiva, você tenha aprendido tão cedo! Abraços, Mara.
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