Instintiva
violência
A
vida é marcada pela violência, característica que está inscrita
em nossos genes como um dos nossos primitivos e mais onipresentes
instintos. O nascimento é um evento violento, em que o novo ser é
tirado (à revelia) do conforto do útero materno para a perigosa
aventura de existir. E a morte? Nem é preciso destacar. É a
violência das violências, mesmo que ocorra de forma “natural”.
Tanto que nos reduz, instantaneamente, a um punhado de carne inerme,
que em questão de horas começa a se decompor e apodrecer.
Boa
parte dos animais – nós no meio – se alimenta de outros, que
abate, sem piedade e contemplação, para prover a própria
sobrevivência. A vida se alimenta de vida. Para que uns sobrevivam,
faz-se necessário que outros, de outras espécies, pereçam (houve
tempos, nem tão remotos assim, em que alguns humanos se alimentavam
da carne de outros). E os animais que não são carnívoros nem assim
se alimentam de coisas inanimadas. Sobrevivem, também, às custas de
seres viventes, posto que vegetais.
Essa
luta sem quartel pela sobrevivência sempre me incomodou, desde
pequeno. Entendo que esta é a ordem natural das coisas e que jamais
será alterada. Mas lá no íntimo, gostaria que não fosse assim. A
inteligência e a sensibilidade que há em mim, ao se contraporem aos
meros instintos, gostariam que tudo fosse diferente. Ou seja, que a
nossa fonte energética, a alimentar, fosse de outra natureza. Qual?
Sei lá! Que fosse, digamos, exclusivamente mineral. Mas não é.
Um
dos “queridinhos da moda”, o escritor norte-americano Jonathan
Safran Foer, jovem talento (tem 40
anos), que se consagrou com os romances “Tudo se ilumina”
(transposto para o cinema) e “Extremamente alto & Incrivelmente
perto”, livros que surpreenderam a crítica e o mundo editorial e
se tornaram best-sellers, toca no assunto. Ele publicou nos Estados
Unidos e na Europa (onde lançou em 2009), “Comer animais”, que a
Editora Rocco lançou
no Brasil em 2011.
E tome surpresa.
Quando
todos esperavam novo romance, já que os dois anteriores continuam
vendendo até hoje rios e mais rios de exemplares, Foer decidiu
escrever não-ficção. O livro é uma detalhada e bem fundamentada
reportagem sobre a indústria da carne no mundo. Para que você tenha
uma ideia
da voracidade humana para devorar outros animais, basta informar que,
apenas nos Estados Unidos, são abatidos mais de dez bilhões de
espécimes por ano para alimentar os glutões e cada vez mais obesos
norte-americanos.
O
autor mostra como funciona a “linha de produção”, a forma
metódica e sistemática de matar quer bovinos, quer suínos ou quer
aves em seu país. E os Estados Unidos sequer são os maiores
produtores mundiais destes três tipos de carne, primazia que há já
bom tempo cabe ao Brasil.
Uma
das experiências pessoais que Foer narra tem muito a ver com a minha
própria, pessoal. Quando garotinho, de uns quatro anos de idade, eu
adorava comer galinha com polenta, uma receita que minha mãe
preparava bem como poucos. Naquela época, não me dava conta que
aquela carne que tanto apreciava era proveniente de um ser vivo,
daquelas aves que ciscavam no quintal e abasteciam a família de
ovos. Não associava uma coisa à outra.
Fiquei
horrorizado quando, certo dia, pilhei minha mãe cortando o pescoço
de uma galinha bem gordinha. Foi aí que me caiu a ficha. Levei uns
seis meses sem comer carne. Essa determinação, todavia, foi embora,
com o passar do tempo e com a perda da inocência. Hoje, sou
carnívoro dos mais vorazes, desses que não conseguem passar um fim
de semana sem um lauto churrasco (como bom gaúcho que sou). E ao
longo da semana, bifes acebolados são presenças obrigatórias no
cardápio das refeições. Mas esse nosso aspecto animal, nem por
isso, deixa de me incomodar. Vai incomodar sempre.
Foer
narra que, quando garoto, era vidrado em galinha com cenoura, único
prato que a avó sabia preparar. Quando fez a mesma descoberta que
eu, ou seja, que se tratava de um ser vivo, teve reação parecida
com a minha, posto que não tão radical. Recusou-se a comer carne,
mas somente em público. Grande coisa! Depois... Bem, depois...
Perdeu a inocência, assim como eu havia perdido, e passou a ser tão
carnívoro, privada ou publicamente, como todo o mundo. Vegetariano?
Nem pensar!
Em
certo trecho do livro “Comer animais” Jonathan Safran Foer
escreve: “Mark Twain disse que parar de fumar era uma das coisas
mais fáceis de se fazer; ele fazia isso o tempo todo. Eu
acrescentaria o vegetarianismo à lista das coisas fáceis”. Ou
seja, daquelas que a gente larga centenas de vezes. E que retoma
outro tanto, claro.
De
qualquer forma, mesmo que apenas filosoficamente, já que nem eu, nem
Foer e nenhum de vocês que me leem
deixaremos de consumir carne apenas por causa dessas e de outras
tantas considerações, o tema, da violência que a vida é, com o
forte abatendo e devorando o mais fraco, ou o menos inteligente, não
deixa de propiciar uma bela reflexão.
O
jovem escritor norte-americano mostrou, sobretudo, que é meticuloso.
Despendeu três anos nas pesquisas e escreveu um livro que, mesmo
diferente de tudo o que havia escrito antes, não desmente, antes
reforça, seu enorme talento, sua originalidade e criatividade e seu
inegável jogo de cintura para encarar qualquer tema. Mas cá para
nós: bem que as coisas poderiam ser diferentes e não ser necessário
(e mais, ser até letal), vida alimentar-se de vida. Pensem nisso
durante seus churrascos de domingo, regados de cerveja estupidamente
gelada.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Sou uma carnívora que de vez em quando se vê dando algumas filosofadas a respeito de comer um cadáver.
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