Hoje
encontrei o Natal
* Por
Urda Alice Klueger
(Escrito em 2008, logo após
a Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)
Hoje
encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira,
seis e pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No
portão aqui do nosso abrigo de flagelados passava um homem
empurrando uma bicicleta e levando uma cachorrinha presa por uma
corrente.
No
primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu
cachorro, e os dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia
começava prometendo ser bom. O homem perguntou:
-
A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à
BR 470?
Eu
disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela
rua, que ele acabaria chegando à BR 470.
-
E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?
Não,
não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia
Guilherme Jensen, e lhe expliquei como fazer, onde entrar.
-
Mas não dá para ir pela BR 470?
Para
Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos
andarilhos que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados
pelo neoliberalismo, apesar de agora já estar mais que comprovado,
lá nos centros de poder, que o neoliberalismo não passava de uma
falácia das piores, simples estrangulador de pobres para encher
cofres já abarrotados de ricos.
O
homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com
dois abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus
em muitos lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é
vestida, atualmente, quando a gente se locomove pelas ruas ou
estradas da minha região, depois que secaram os mares de lama
oriundos do derretimento dos morros. Um executivo que saísse a andar
por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não
teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença,
ou seria falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas
coisas; talvez fossem algumas doenças; quem garante que os abcessos
nas bochechas não proviessem de terríveis dores de dentes que
aquele homem sorridente com sua cachorrinha tivesse tido só e
desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia conhecer?
Aí ele me disse:
-
Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em
dois lugares, e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento
fica mais fácil...
Só
então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e
sujeira que a gente nem prestava atenção.
Sim,
haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os
cachorros foram correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos
morros, de onde a minha cidade sangrara como nunca havia sangrado
antes, e as casas que já não existiam, e outras casas que haviam
ficado enterradas na lama até a altura da metade das janelas...
-
Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?
-
Dá para fazer uns 80...
-
E a cachorrinha anda isso tudo?
-
Não, ela vai aqui no engradado...
Havia
um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o
homem carregava seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia
uma garrafa de dois litros quase cheia de água.
A
cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões
para o meio da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha,
colocou-a no engradado, onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem
se importar com a interrupção das brincadeiras que fazia com meu
cachorro. Ela amava profundamente aquele homem, morreria por ele. E
ele me contou:
-
Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de
Navegantes. Está com quatro meses.
Conversamos
rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as
estradas e cidades do sul do Brasil.
-
Em Barra Velha – contou-me – há uma mulher que tem doze
cachorros. Todos grandes. Ela os acha na rua e leva para casa. É uma
mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por mês, só de
ração.
Eu
me admirava.
-
Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de
madeira ficaram imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para
ir a Guaramirim não tem que pegar a BR 470?
Eu
tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o
sobrenome, que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem
tem um último bem que não pode ser roubado por nenhum neoliberal.
-
Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de
enorme valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry. Eu estava mesmo
bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade pequenininha. –
Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho amigos
lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve
até chope!
Pronto,
estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há
dentro de mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal,
quando ela aparece sem querer.
Ele
contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já
tivera; sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que
existia em Blumenau e em Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a
cachorrinha, que ia que ia montada na garrafa de água do engradado.
-
Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar
pela BR 470?
Garanti-lhe
de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:
-
Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?
-
Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as
mulheres que trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que
deveria ter, do consolo dos braços amigos, que sabe do reencontro
com alguma antiga namorada, mas tudo estava implícito na intensidade
da emoção dele.
Eu
deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das
Missões, onde íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de
fora. Disse-lhe:
-
Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.
Então,
a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:
-
Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.
Sei
bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não
conseguem água com facilidade, que muitas vezes são apedrejados
quando se aproximam de alguma casa para pedir água, pois as famílias
pensam que eles vêm para lhes roubar as crianças. Aquele homem de
abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do Capital dividia sua
última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e mesquinha
diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o
fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum
constrangimento pelas feridas supuradas, com a galhardia de um rei.
-
Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe
ensinei!
-
Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão
cedo! É muito bom viajar quando a gente pode ir conversando!
Em
Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa.
Será que aquele homem não era um dos reis magos e não estava
encardido assim por ter atravessado os desertos bíblicos?
Feliz
Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado
assim o Natal!
Blumenau,
14 de Dezembro de 2008.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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