A
indulgência de Natal: ata da assembleia dos bichos
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Aos
trinta dias do mês de dezembro do ano de dois mil e dezessete,
reuniu-se, às catorze horas, na clareira desmatada da floresta
amazônica, a Assembleia Geral dos Bichos (AGB), presentes aqueles
cujas assinaturas constam na Folha de Presença.
Vários
bichos justificaram ausência, em função de dificuldades de
deslocamento: o Cabra Cabral, o Porco, a Ave de Rapina, o Chimpanzé
Perrela e Salim - o Tigre de Bengala.
O
Chacal, presidente da AGB, deu o informe que antecedeu ao único
ponto da Ordem do Dia: a indulgência de natal concedida a bichos que
esfolaram, roubaram, receberam propinas, causando mortes e fome com o
desvio de recursos da saúde e da educação.
O
Chacal, revirando as patas dianteiras em permanente dancinha,
informou aos presentes sobre a publicação no Diário Oficial da
Floresta (DOF) do decreto do Indulto de Natal, de 22/12/17, que reduz
a vinte por cento o tempo exigido de cumprimento da pena para o
condenado indultado, perdoa o pagamento de multas relacionadas a
crimes cometidos contra o Erário Público, liberta até mesmo os
réus que estejam respondendo a outro processo ou cujos recursos
ainda estão em andamento em instâncias judiciais.
-
É assim que vamos estancar a sangria – aplaudiu a Raposa Felpuda.
O
escaldado Gato Angorá, que tem medo de água fria da lava-jato e só
permanece solto porque goza de “foro especial”, elogiou a parte
referente ao perdão do pagamento de multas.
-
Temos que manter isso, viu? – reafirmou o Chacal, pensando no seu
futuro que ao Diabo pertence.
Manifestaram
apoio ao decreto de indulto o Jacaré-na-lama, o Lobão Guará, o
Asno Marun, o Zebra Xuxu, o Urubu Cabeça-de-Piroca e o Tucano
Emplumado já indultado antecipadamente pelo Meritíssimo Hipopótamo
Togado, membro do Supremo Tribunal da Floresta (STF).
O
Flamingo Frederich, que veio lá da selva do Amapá, protestou,
altaneiro, argumentando com sua voz inconfundível que o decreto era,
na realidade, um auto indulto, em benefício do autor e de seus
compinchas e que dessa forma estimulava a corrupção ao perdoar os
criminosos de colarinho branco. Citou o caso do Tatu Argolo, que
recebeu R$1,4 milhão do esquema de corrupção, condenado a 12 anos
e 8 meses em 2015 e que já pode sair da prisão. Comunicou que vai
recorrer à 3ª Vara Florestal em ação de anulação do decreto:
-
O Chacal legisla em causa própria – acusou o altivo
Flamingo.
Instaurou-se
acalorado debate na assembleia. O Capivara Jardim invocou “razões
humanitárias” para justificar o indulto, o que provocou risadas
generalizadas entre os presentes. A Onça Pintada estranhou que a
palavra “corrupção” tenha sido banida do discurso oficial, que
simplesmente finge ignorá-la, justamente no momento em que a
floresta mergulha no seu mais alto grau de putrefação. Denunciou
que nunca os autores do indulto de natal se preocuparam com a
situação das mais de 700 mil feras pobres enjauladas na selva,
vivendo como bichos em infectas penitenciárias de rios poluídos por
esgotos.
O
Chacal, sorridente, se apropriou da palavra para tranquilizar os
presentes e afirmar que o indulto se espelha na indulgência
concedida pela Igreja católica, destinada à remissão total ou
parcial da pena temporal devida à justiça de Deus. Esse é o
objetivo do indulto natalino: conceder indulgência ao pecador
arrependido para reduzir penas severas e excessivas e evitar que
depois de morto purgue suas penas no Purgatório. Em troca, o pecador
retribuía com donativos piedosos, esmolas, jejuns, orações.
-
Se até a Justiça Divina é indulgente, por que não sê-lo-íamos
nós? – indagou o Chacal, benzendo-se e informando que indultaria
os bichos que fizessem peregrinação ao Palácio do Jaburu no mesmo
espírito do Papa Bonifácio VIII que no ano de 1300 concedeu
indulgência extraordinária aos fiéis que efetuassem peregrinação
à Roma e que rezassem certas orações como “Alma de Cristo,
santificai-me, Corpo de Cristo, salvai-me, Sangue de Cristo,
inebriai-me, Água do lado de Cristo, lavai-me”.
A
Foca Jandira, vindo do mar, pediu aparte para condenar tal prática
que incentivou a venda livre de indulgências plenárias por
profissionais, com protesto na época de Martinho Lutero, o que levou
o Concílio de Trento, em 1562, a tentar corrigir os abusos, sem
sucesso.
-
A medida não pode ser permissão para cometer pecado, nem o perdão
do futuro pecado e nem pode ser concedida por qualquer mequetrefe. Um
exemplo bíblico é o de Davi, culpado por homicídio e adultério,
que mesmo depois de perdoado teve como pena a morte de seu filho. Por
isso, o Papa Francisco, na Bula Misericordiae
Vultus, estabeleceu
que indulgência só pode ser concedida a quem demonstrar intenção
de não cometer o mesmo pecado - disse a foca que é especialista em
bulas de remédio por razões profissionais.
A
Coruja entrou no debate, com firmeza, afirmando que o Chacal não é
um papa da Idade Média e, portanto, “não tem poder ilimitado de
conceder indulto. Se o tivesse, aniquilaria as condenações
criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o
arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem
a República Constitucional Brasileira”. A Coruja disse que, por
essa razão, acabara de ingressar com ação no Supremo Tribunal da
Floresta questionando o indulto natalino que, se mantido, sepultaria
a Constituição Florestal e aumentaria o descrédito da sociedade
nas instituições.
-
A sociedade perde. O infrator, o transgressor da norma penal, será o
único beneficiado com o indulto. A possibilidade de livrar o detento
do pagamento de multas relacionadas aos crimes cometidos é uma forma
de renúncia de receita por parte do poder público. Se o decreto for
mantido, será causa de impunidade de crimes graves e de estancar o
combate à corrupção sistêmica – escreveu a corajosa Coruja.
A
Carneira Benta, presidente do Supremo Tribunal da Floresta, concordou
surpreendentemente com sua colega Coruja e ali mesmo, na assembleia,
concedeu liminar suspendendo o decreto, sob o argumento de que “o
indulto é um instrumento que beneficia aquele que, tendo cumprido
parte do débito com a sociedade, obtenha o reconhecimento de que seu
erro foi assumido e punido, sendo lhe dado nova chance para reparar
esse erro”.
-
Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade. Indulto não
é prêmio ao criminoso, nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato
de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que,
tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a
reconciliar-se com a ordem jurídica – disse Benta Carneira.
Foi
respaldada pelo relatório da ONG Transparência Internacional que
aponta o estímulo à corrupção como uma das consequências desse
tipo tendencioso de indulto. Nenhuma dessas mutretas constava da
minuta original do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária da Floresta (CNPCPF), amplamente debatida, que buscava
humanizar a situação dos presos. Apesar de encaminhada com
antecedência ao Capivara Jardim, foi desconsiderada pelo Chacal, que
oportunisticamente, perfidamente, acrescentou outros pontos para
favorecer a corrupção.
-
Fi-lo porque que quilo – contra-atacou o Chacal, irredutível,
confiante na apatia dos bichos.
A
Assembleia decidiu remeter o assunto ao STF que vai apreciar o
decreto em fevereiro de dois mil e dezoito, com o hipopótamo já
afiando os cascos, esperando que os bichos da Floresta continuem
apáticos, submissos e não saiam às ruas para apoiar quem teve
útero para enfrentar o Chacal.
Nada
mais havendo a tratar, o Chacal encerrou a reunião e eu, Macaco
Prego, lavrei a presente ata que vai assinada só por mim, para não
ser censurada. Aproveito a data para desejar Feliz Ano Novo ao
desocupado leitor que chegou a ler esse textão, com votos de maior
combatividade em 2018. Os que até aqui chegamos, não podemos perder
a esperança de continuar a luta por uma floresta com árvores,
plantas, flores, bichos vivendo em liberdade, rios limpos, bosques
floridos, a diversidade respeitada e incentivada, Nesta luta, como
cantou o poeta, “todas las armas son buenas: piedras, noches,
poemas”.
ADENDO:
A Ata não registrou o discurso de uma convidada especial: a Lhama
andina Supa, que deu informe sobre o indulto de natal concedido pelo
presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski (PPK) ao ex-ditador Alberto
Fujimori. Processado por corrupção, PPK - o Pepeka - para não
sofrer impeachment trocou o indulto por votos de congressistas
fujimoristas em seu favor. Fujimori cumpria condenação por ser
autor direto do assassinato de 25 pessoas em 1991, incluindo
crianças, e de ser responsável pela morte de outras 70 mil, além
de estar envolvido em escândalos de corrupção, conforme videos que
comprovam subornos realizados por Montesinos, o Rocha Loures de
Fujimori. O indulto, considerado um "insulto" por ser uma
moeda de troca, gerou protestos de milhares de manifestantes em todo
o país: "o peruano não vai se acovardar, fora PPK".
*
Jornalista
e historiador.
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