Rio
São Lamberto de ontem e hoje
* Por
Mara Narciso
Quando
alguém menciona a infância maravilhosa imaginamos que a mente
infantil se confunde e traduz, anos depois e de forma exagerada, algo
que foi apenas bom. Boa era a natureza, um presente para uma criança
enjaulada num pequeno apartamento no centro da cidade e que fazia
piqueniques nos arredores de Montes Claros com seus pais, tios e
primos. O destino era o Rio São Lamberto, na região do Pentáurea
Clube.
Muito
cedo no domingo, para reduzir a bagagem, a comida era levada
semipronta, com a panela amarrada pela tampa com um pano de prato. O
meio de transporte era a Kombi de Tio Zé. Nela se amontoavam Tia
Ninha, Virgínia, Vânia e Júnior, meus pais Alcides e Milena, meu
irmão Helder, os mais frequentes, mas os tios Chico, Áurea e Dida,
também iam. Juntávamos até treze pessoas no carro. Motor traseiro,
mesmo sem carteira (precisaria de um carro adaptado, inacessível),
Tio Zé ia dirigindo pela estrada de terra. Os homens iam no banco da
frente, as mulheres no segundo banco e as crianças atrás. As
comidas ficavam empoleiradas no colo de alguém ou dentro de cestas
de taquara. As cervejas iam geladas e no destino eram deixadas dentro
do rio. Nenhum charme, apenas farofeiros.
A
viagem era de uns 20 km, mas, para nós, os meninos, era demorada,
sendo uma aventura no meio da poeira e das cantorias, num converseiro
de gritos e risadas. E a emoção da chegada? Uma curva na descida e
lá estava o Rio São Lamberto, caudaloso, com poços, lajes e
corredeiras borbulhantes. A água era gelada e cristalina, cheia de
piabas. A estrada atravessava o rio, e não se via qualquer detrito.
De roupa de banho e com um adulto ao lado, colocávamos os pés na
água. Que delícia! Tínhamos aulas de natação na Praça de
Esportes, mas minha mãe não tirava os olhos nem os gritos de cima
da gente.
Num
descampado à margem, sobre areia clarinha, os homens, só de calção,
ensaiavam uma pelada, porém sem regras nem trave. Era apenas uma
brincadeira e as mulheres também fingiam jogar bola. Árvores
frondosas faziam sombra, jogando folhas amarelas na água, com
bichinhos de vários tipos, que eu coletava.
Menino
quer é sumir no meio do mato. Não tinha perigo, nem medo do sol e a
gente pegava uma trilha com algum adulto e desaparecia catando pequi,
cagaita, coquinho, mangaba e outros do cerrado. Pegávamos gravetos
cobertos de musgos, como também ninhos de passarinhos. Tirávamos os
ovinhos sem nenhum pudor. Ninguém pensava que fosse errado.
As
mulheres terminavam de fazer a comida em fogões de pedra
improvisados, mas de olho nos meninos, em revezamento. Comíamos
rápido (o arroz era papento e cheirando a fumaça) para não perder
um minuto do rio. Perto dali tinha muitas nascentes, com riozinhos
correndo para todo lado. Próximo, havia uma área extensa, de areia
vermelha, com água rasa e transparente. Não se via chão pelado,
apenas pequenas áreas para plantar ou criar gado. O terreno adiante
era de cascalho, com pés de abacaxi, manga e jabuticaba nas
fazendinhas perto. Os cachorros latiam, e os moradores eram pessoas
simples, com as quais fizemos amizade. Fomos muitas vezes naquela
água que encobria um homem, num rio-saudade onde encontrávamos
outras famílias se divertindo.
Uma
sequência de crimes ambientais gravíssimos, como desmatamento do
Morro Vermelho para tirar areia e cascalho resultou em tragédia e
desolação. Pelado, o morro desceu e entupiu a calha do Rio São
Lamberto que jaz morto. Sua nascente é em Bocaiúva, passa por
Montes Claros, recebia água de várias nascentes na região do
Pentáurea e ia irrigar o Rio São Francisco. A Lagoa do Pentáurea,
que é fruto do seu represamento, também se entupiu. Na sua
revitalização foram retiradas quatro mil caçambas de terra, o
canal do rio foi restaurado, mas em pouco tempo já estava outra vez
assoreado. Medidas de contenção no morro não superam a sanha por
destruição de pessoas, que jogam, inescrupulosamente, terra até
dentro do leito do rio.
Vendo
a situação de hoje, e de antes, não tem como não falar que a
infância foi boa. A natureza era viva, e nós a destroçamos. Nós,
pequenos, pensávamos que o Rio São Lamberto seria eterno. Eterna é
a irresponsabilidade humana. E com seca tudo fica ainda mais
dramático.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
O saudosismo justifica-se com a triste realidade. Abraços, Mara. E melhor sorte para o nosso Sudeste nesta época de chuvas...
ResponderExcluirSeca e incendiário enlouquecido. O norte de Minas está precisando de água e sensatez.
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