Pacamão,
o caboclo de fogo
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Pérolas
que se convertem em rolas divertem pessoas bem-humoradas, mas
escandalizam os moralistas pudibundos, sobretudo nesses tempos
bicudos. Por isso, a pajé do Marajó, Zeneida Lima, 83 anos, exímia
escritora, de comum acordo com a editora, suprimiu o capítulo XXX
-Caboclo
de Fogo -
do seu novo livro Meus
Caruanas,
que será lançado em São Paulo pela Dialeto. Ela não quer dar
pérolas a porcos carolas (carola mesmo). Fui autorizado a publicá-lo
aqui neste Diário
do Amazonas.
Tirem as crianças da sala, que aí vem narrativa picante (picante
mesmo).
Dona
Zeneida, bisneta de Coemitanga, xamã da etnia Sacaca, já publicou
vários livros nos quais registra cultos, ritos, narrativas
míticas e atos de cura da chamada pajelança cabocla. Escreveu
este capítulo suprimido inspirada em seu amigo Nunes Pereira,
antropólogo maranhense, que recolheu histórias apimentadas contadas
pelos índios e as transcreveu no livro Moronguetá,
um Decameron Indígena,elogiado
por Thiago de Mello como “romântico, heroico, fescenino e
obsceno”. Esse Boccaccio indígena, com seus eróticos contos de
amor, nos dá lições de vida.
Lições
de vida é o que o capítulo de dona Zeneida nos oferece, numa época
na qual tarados que ejaculam sobre passageiras de ônibus são
liberados por juízes misóginos que toleram o assédio, mas são
intolerantes quando censuram burramente a nudez em obra de arte. Eladenuncia
os espertalhões machistas que se dizem curandeiros, rezadores,
médiuns e incorporadores de escusas entidades e, desta forma, acabam
enxovalhando a pajelança tradicional, reconhecida como um saber a
ser preservado.
Esse
foi o caso de um tal Mateus, pintor de paredes que, de repente,
aparece em Marajó, jurando que era pajé, natural de Marapanim, a
terra do carimbó, quando depois se soube ser ele maranhense da costa
do Salgado.
Picasso
de igarapé
“Mateus
era homenzinho miúdo, pés pequenos, pernas finas saindo do calção
como dois estrepes fincados no chão, camiseta de malha, braços
desengonçados e compridos que balançavam para equilibrar a cabeça
enorme sobre os ombros, com pescoço curto. Para
complicar, ele se fantasiava com um pouco de purpurina e pintura leve
no rosto e nas mãos”.
Na
festa local do Círio, em outubro, dona Isaura, senhora já de certa
idade, contratou para pintar sua casa o Picasso (nem tanto) de
paredes. “Ele
aplicava-se em seu trabalho com afinco e dedicação. Às vezes nem
se dava conta dos respingos de cal no cabelo liso, negro e abundante,
que emoldurava a face de pele áspera. Os olhos esbugalhados e o
nariz recurvo e de grandes fossas, como bicos de ave de rapina,
encimavam a boca rasgada pelo lábio superiorfino
e o inferior esborrachado, retraído, com o queixo fundido no
pescoço”.
Por
causa dessa aparência, ganhou o apelido de Pacamão, peixe da região
também conhecido como bagre-sapo, peixe sapo ou cururu. Enquanto
dava primeira mão de tinta, narrava com fala escorregadiça casos de
Marapanim e da região do Salgado, todos inventados, nos quais ele
aparecia operando milagres, deixando dona Isaura extasiada com a
parolagem (parolagem mesmo). Percebeu que a mulher para quem
espichava os olhos “era
bastante crédula e ingênua”,uma
pomba lesa (pomba mesmo) fácil de ser enrolada (enrolada mesmo).
Dona
Isaura nem de longe percebeu que o espertalhão lhe varria o corpo
com os olhos concupiscentes. Tampouco reparou no olhar lúbrico,
molhado e meloso, que lançava sobre as meninas menores que habitavam
a casa. Por ser crédula, ela se deliciava com as invencionices de
Mateus que jurava ser capaz de mexer os seus pauzinhos
(pauzinho mesmo) para curar qualquer doença, fazer o bem e levar os
mortais às portas da felicidade.
Passa
dendê
Numa
tardezinha, terminada a jornada de trabalho, Pacamão recolheu latas
de tinta e pincel (pincel mesmo). Viu uma rede no avarandado da casa
e se esticou nela, se queixando de dores musculares, sensação de
dormência nos lábios, na língua e no céu da boca. Exalava, porém,bafo
de pinga. É que enquanto pintava, havia esvaziado garrafa de cachaça
artesanal de jambu.
Condoída
pelos reclamos de dor e sofrimento do pintor, dona Isaura se acercou
da rede disposta a prestar-lhe socorro. Serviu-lhe chá de carqueja e
sentou-se a seu lado para lhe fazer companhia.
“O
Pacamão, de viés na rede, entreabria os olhos, gemia e fungava,
grudado no decote da mulher e em seu jeito de sentar que deixava
entrever as coxas, que embora flácidas, eram, afinal, coxas. A
fungação foi aumentando com um gungunado entrecortando a
respiração. Com voz soturna anunciou:
-
Eu sou o caboclo Dendê, fia. Traz erva pra fumigar eu. Traz azeite
de dendê na cuia, fia. Traz azeite de dendê.
Entre
espantada e confiante, dona Isaura se levantou e foi à cozinha para
providenciar os pedidos, tempo em que o salafrário aproveitou para
se desnudar e se enrolar na rede. Já de volta, tão logo ela
depositou o fogareiro ao lado, o Pacamão gemeu:
-
Fia, passa o dendê aqui... Tô sofrendo, fia.... Passa o dendê...
aqui, fia.
“O
Pacamão esticou-se e pôs a pomba pra fora. D. Isaura surpresa, teve
alguns segundos de hesitação, mas de boa-fé adiantou-se e satisfez
o pedido. Passou o azeite comligeireza,
tímida, presa de espanto e duvidando se estava cumprindo um ato de
fé”.
“O
homem arqueou o corpo, gemeu, fungou e a mulher, assustada,
afastou-se com o azeite. Ele saltou da rede em trajes de Adão, com a
pomba azeitada em riste e começou a cantar:
Eu
sou caboclo de fogo
Ai,
ai, ai
Passa
dendê, passa dendê.
“Esticou
o corpo, saracoteou, balançou a rola em direção à mulher,
continuou a cantoria, como uma ladainha, usando o ritual para
referendar sua sacanagem:
Meu
Santo Antônio
Já
estou duro
É
pra todo mundo ver
Passa
dendê / passa dendê”…
Pérola
sem pé
Aquela
cantoria atraiu as menores, que ficaram espantadas com a cena. Diante
delas, o Pacamão continuou a tremelicar, dançar e fazer gestos
obscenos. Virou-se para as meninas e cantou:
Meninas
venham aqui depressa
E
venham ver, venham verMeu
santo Antônio, já está duro
Vocês
têm que amolecer
Passa
dendê, passa dendê.
“As
meninas saíram correndo em busca de socorro. D. Isaura parecia
hipnotizada, não conseguia despregar os olhos do pirulito do
malandro que, sentindo-se só com ela, adiantou-se e levantou sua
roupa. Nesse momento chegou a polícia. O Picasso de paredes foi
vestido à força e conduzido “em transe” à Delegacia, sempre
fingindo estar possuído.
“Depois
de longos tremeliques, já na sala do delegado, disse que havia
voltado a si. Jurou que era pajé. Com ar “inocente” perguntou o
que fazia ali, não sabia o que tinha acontecido. Naquela época não
havia Delegacia da Mulher. Os policiais eram todos homens que, mesmo
diante do relato desconchavado, libertaram o malandro, insensíveis
às reclamações femininas. D. Isaura parece que aprendeu a
lição de que nem todos os que se dizem pajés estão falando a
verdade. É sempre bom alimentar desconfianças antes de se entregar
a promessas fáceis e a estranhos rituais”.
Dona Zeneida
me enviou o capítulo, aqui resumido, no momento em que João
Rodrigues, o Pinduca, conhecido fotógrafo de Manaus, comentava nas
redes sociais o Encontro
de Mulheres Pérolas, que
costuma ser organizado por uma igreja evangélica. Na foto,
duas mulheres escondem a palavra “mulheres” e o “pé”,criando
o “encontro de... rolas”. Com larga experiência em jornais
de Manaus, Pinducão, que detesta enrolação (enrolação mesmo) e
não passa dendê em ninguém, elogiou a foto.
P.S.
– Dona Zeneida é autora de uma série de livros sobre os
encantados, a questão ambiental e educação para a saúde, entre
eles “Meus caruanas” (no prelo), “O Mundo Místico dos Caruanas
da Ilha do Marajó”, “O Mosquito Dengoso”, “A Escola AEIOU”,
“Perigo na Floresta”, “Dona Chica”, “Recado de Papagaio”,
"Lendas da Amazônia", "A Estranha Poesia".
Compôs mais de 100 músicas que encantaram Egberto Gismonti.
*
Jornalista e historiador.
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