A
resistência eterna da nossa juventude
** Por
Urariano Mota
O
romance “A mais longa duração da juventude” fala por si, desde
o título. Mas ele também fala em trechos como estes:
“Acompanho
os fios brancos de suas cabeças se tornarem frágeis, quebradiços,
e me falo e percebo que algumas não piscaram no alto. No píncaro do
tempo, não decaíram, como se fossem uma revolta contra a biologia,
contra a organização da vida que se desorganiza e se desintegra
quando chega ao fim. Parodiando Goethe no poema Um e Tudo, eles foram
atravessados pela alma do mundo, e com ela lutaram sem descanso, como
se vivos pudessem ter a eternidade. Tomaram outras formas, é certo,
mas mantiveram a permanência do ser da juventude. Como? Não sou um
filósofo, e assim não posso escrever ‘uma análise concreta de
uma história concreta’, para usar frase dos anos de 1970.
E
como não sou um filósofo, tenho que falar desses companheiros de
jornada como um escritor. E por isso as minhas mãos tremem. Em lugar
de gelo ou de as amarrar, livro-as pela crueldade, que pode ser
remédio para a ternura que me embaraça. Mas como ser cruel com o
objeto que nos assalta e se revela como uma perseguição? Então
sejamos verdadeiros, apenas. Isso é o máximo dos máximos que
poderei sonhar.
Pergunto
ao novo dono da pensão onde morei se existe acima de nós uma
água-furtada. Ele me olha como os cidadãos saudáveis olham os
assaltantes ou loucos. Corre sobre mim, de alto a baixo, a sua
diferença e me responde: ‘Eu não sei’. E não posso nem devo
lhe dizer que procuro Selene, Zacarelli, Batráquio, Luiz do Carmo e
o jovem que fui ali.
‘Onde
estão todos eles?
— Estão
todos dormindo
Estão
todos deitado.
Dormindo
Profundamente’
Assim
escreveu Manuel Bandeira ao evocar a casa do avô na Rua da União,
que fica na esquina. Mas isto não é o poema de Bandeira. Isto é
uma narração de revolta, que exige o retorno do que fomos. E por
isso desço e procuro a água-furtada onde um dia me escondi. O lugar
onde à noite ouvi Ella Fitzgerald sem vitrola. Aquele, onde ouvi
Ella somente ao alisar a capa do disco, que girava em mim. E por isso
vou ao muro do Parque 13 de Maio e nele subo, eu, este senhor que não
pula mais de qualquer altura, eu, este senhor que deseja a vida de
antes retornada, com esforço vou à grade sobre o muro e busco o
pássaro da juventude. E o encontro numa pequena elevação do
telhado, oculto da vista do público, das pessoas que na calçada
estranham um senhor obeso arfando. Eu te achei, nós te achamos,
pássaro.
Mas
o que faremos da imortalidade? O que plantaremos no lugar do que é
efêmero, que retira do próximo fim o seu gozo? Como teremos a
saciedade sem a fome? Seria a imortalidade o paraíso sem o seu
contrário, uma duração eterna do que é fluido e fugaz?
O
que não é mais Luiz do Carmo está entre flores. O que foi, eu sei.
O que não é, é este sobre o qual os amigos têm os olhos com
lágrimas. Então, não sei de onde me vêm palavras que digo a ele
me dirigindo a seus filhos. Não sei bem o que falei, apenas possuo
imagens que destaquei sobre o escritor. O jornalista. O homem de
partido. Mas acima de tudo o companheiro de geração. Olho para o
corpo de Luiz do Carmo, olho para os filhos, e só me vem o mais
íntimo, o que não posso falar. Eu sei e não posso, não devo, para
não cair no mais lamentável espetáculo que um homem pode cair.
“Como escutar Ella Fitzgerald? Você não tem vitrola”, ele me
disse. O mais nu e mais íntimo, que fala da entrega da alma ao
melhor, à fruição da arte, ao espírito mais belo e rebelde da
juventude. Engasgo, e por estar engasgado sei que devo sair do
velório. A minha mulher me dá o braço. Me atormenta, mas não falo
a pergunta que escrevo agora:
-
Para onde vamos?
Saio
carregado”.
O
romance continua até uma iluminação, quando se revela A mais longa
duração da juventude. Lançamento amanhã na Livraria da
Praça, praça de Casa Forte, das 17 até as 20 horas.
*Diário
de Pernambuco
**
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
"Luiz do Carmo está entre flores", nós e todos os outros com esse pendor para morrer.
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