A
presença do bacharel na vida brasileira
* Por
Alberto Venâncio Filho
A
presença do bacharel em Direito é uma constante na vida brasileira.
No início da colonização, as primeiras expedições portuguesas já
encontraram em São Vicente o bacharel de Cananéia. Por outro lado,
o tipo de ensino colonial, de caráter eminentemente literário e
retórico, iria colocar em posição de prestígio o bacharel em
Artes, saído dos colégios dos jesuítas, que constituiria,
inclusive, base da formação do bacharel em Direito. Na
administração colonial, encontrar-se-á em situação de destaque o
bacharel como um dos elementos de que dispunha a Metrópole para a
manutenção do seu poder colonizador. Este tipo de administração,
de caráter fiscalista e eminentemente formal, se desinteressava por
completo pelo desenvolvimento das atividades econômicas. Quando
aparece uma atividade de monta, como foi o caso da mineração, a
exploração era de caráter predatório, interessada a Metrópole em
retirar da Colônia o máximo de recursos. Veja-se o comentário de
Eschwege:
Na
realidade, entregou-se um tesouro a ignorantes que não sabiam
preservá-lo e a juristas, que nada fizeram senão estabelecer
medidas legais inoportunas. Nem estes nem aqueles foram capazes de
propor medidas adequadas, pois nem sequer percebiam que elas
existiam.
À
medida que a sociedade se desenvolvia e que ganhavam densidade outras
atividades econômicas, passa a surgir uma classe de letrados, em
grande número bacharéis em leis que obtiveram em Coimbra, e em
alguns casos, em outras universidades européias, a sua formação
intelectual. O prestígio dessa geração não se exerce apenas na
Colônia, mas alcança a Metrópole, onde, na segunda metade do
século XVIII, são brasileiros os ocupantes de muitos dos principais
cargos da administração portuguesa. É também no seio desse grupo
que surge o movimento pela Independência, e por isso pôde, com
justeza, dizer Gilberto Freire que a Inconfidência Mineira foi uma
revolução de bacharéis - pelo menos de clérigos que eram antes
bacharéis de batina do que mesmo padres, alguns educados em Olinda,
no Seminário liberal de Azeredo Coutinho, em todos os principais
ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas
também de um cidadão que se propõe a servir o Estado - como foram
as duas revoluções pernambucanas preparadas por homens também do
século XVIII: a de 1817 e a de 1824.
Esta
geração se imbuíra também, nos seus estudos europeus, dos
princípios do "enciclopedismo francês". Estavam
impregnados daquele liberalismo que precedeu à Revolução Francesa.
Mesmo os que terminavam seus estudos na Colônia, recebiam este
influxo através da leitura dos livros franceses. É o exemplo do
Cônego Luís Vieira da Silva, graduado pelo Seminário de Mariana,
em Filosofia e em Teologia Moral, no Colégio dos Jesuítas em São
Paulo, que tinha, na sua biblioteca, toda a gama desses pensadores.
Quando
da transmigração da família real portuguesa para o Brasil, virá
desempenhar papel de singular destaque um bacharel de gênio, José
da Silva Lisboa, Barão, e, depois, Visconde de Cairu. Para San Tiago
Dantas,
ele
(Cairu) nos aparecerá na galeria dos nossos patriarcas como o
espírito mais consciente dos problemas econômicos do seu tempo e
como arquiteto de algumas de suas mais felizes soluções.
Bacharel
em Cânones, em Direito Canônico e Matemática pela Universidade de
Coimbra, retorna ao Brasil para ser professor de Grego e Hebraico no
Real Colégio das Artes de Salvador. Mas sob o influxo das idéias de
Hume e do livro Ensaios sobre a Riqueza das Nações, de Adam Smith,
se volta para a análise dos estudos econômicos. Em 1789 aparece o
seu primeiro livro, a parte de seguro marítimo, dos Princípios de
Direito Mercantil. E, logo em seguida, em 1804, o Princípios da
Economia Política. Por ocasião da chegada da família real na
Bahia, é o responsável pela grande medida da abertura dos portos,
com a qual a sociedade brasileira rompe o regime de clausura em que
até então vivia, para se integrar nas grandes correntes do comércio
internacional. Afirmou, pois, com justeza, San Tiago Dantas que o que
caracterizou a sociedade brasileira na passagem do século XVIII para
o XIX foi justamente a presença de uma elite, pequena, mas dotada de
invulgar capacidade, que apenas dependia para liderar o país, de
conseguir levar sua influência até o trono e ter acesso aos
círculos superiores da administração.
Foi,
exatamente, esta geração a responsável pelo movimento da
Independência e que mais tarde está presente na Assembléia
Constituinte. Participa Cairu do Conselho de Estado que prepara a
Constituição de 1824, este admirável monumento de construção
jurídica, e, na Assembléia Legislativa de 1826, retoma a idéia de
Fernandes Pinheiro, para criar, em 11 de agosto de 1827, os cursos
jurídicos de São Paulo e Olinda.
Phaelante
da Câmara aproxima a data da criação dos cursos jurídicos à
derrota das armas brasileiras nos campos de Ituzaingó, defronte da
Ilha de Martim Garcia. E explica:
E
não é sem propósito que acentuo esta coincidência. Segundo
Armitage, aqueles insucessos produziram os mais satisfatórios
efeitos na ordem civil, desanimando as vocações militares e abrindo
as portas às outras carreiras, às gerações novas, tal como se deu
em nossos dias, após o desastre emocionante de Canudos. A medida
estava, portanto, de acordo com a sucessão dos acontecimentos da
psicologia nacional. Realçando ainda mais o fato de terem sido
escolhidos para servir de sede aos prometedores centros intelectuais,
duas cidades em evidência - a de São Paulo - célebre pelo Grito do
Ipiranga e pelo renome dos Andradas - e de Olinda, viveiro de
patriotas onde na religião do martírio a mocidade brasileira viria
também a aprender a liturgia do civismo.
Os
cursos jurídicos foram, assim, no Império, o celeiro dos elementos
encaminhados às carreiras jurídicas, à magistratura, à advocacia,
e ao Ministério Público, à política, à diplomacia, espraiando-se
também em áreas afins na época, como a filosofia, a literatura, a
poesia, a ficção, as artes e o pensamento social. Constituíram,
sobretudo, a pepineira da elite política que nos conduziu durante o
Império. Numa frase muitas vezes citada, e algumas vezes deturpada,
disse Joaquim Nabuco que "já então (décadas de 1840 e 1850)
as faculdades de Direito eram ante-salas da Câmara". E
prosseguia:
Na
Inglaterra, as associações de estudantes discutem as grandes
questões políticas, votam moções de confiança, destroem
administrações, como fazem o parlamento. Gladstone nunca tomou mais
a sério os grandes debates da Câmara dos Comuns do que os União de
Oxford, quando propunha votos de censura ao Governo de Wellington ou
ao de lord Grey. Em Olinda, não havia esse simulacro de parlamento
em que se formam os estudantes ingleses; os acadêmicos
exercitavam-se para a política em folhas volantes que fundavam.
Comentando
a posição de bacharel, afirma Gilberto Freire que o prestígio do
título de "bacharel" e "doutor" veio crescendo
nos meios urbanos e mesmo nos rústicos desde o começo do Império.
Nos jornais, notícias e avisos sobre "Bacharéis formados",
"Doutores" e até "Senhores Estudantes",
principiaram desde os primeiros anos do século XIX a anunciar o novo
poder aristocrático que se levantava, envolvido nas suas
sobrecasacas e nas suas becas de seda preta, que nos bacharéis -
ministros, ou nos doutores - desembargadores, tornavam-se becas
"ricamente bordadas e importadas do Oriente". Vestes
quase de mandarins. Trajos quase de
casta.
casta.
(Das
arcadas ao bacharelismo, 1977).
*
Jurista, professor e historiador, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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