O
Muro de Berlim
* Por
Urda Alice Klueger
Em 1961, quando construíram o Muro de Berlim, eu tinha nove anos, e mal-e-mal sabia que Berlim ficava na Alemanha. Essas coisas de Alemanha dividida, de pós-guerra, de bloco capitalista e socialista, eram todas coisas das quais eu ainda não tinha consciência. Sabia, porém, como não podia deixar de ser, que a Alemanha havia sofrido muito durante a guerra, pois ouvia as inúmeras histórias das pessoas de Blumenau, que mandavam pacotes com comida e roupa para seus parentes do castigado país, e espantava-me ao saber que as roupas enviadas tinham que ser lavadas uma vez, para não parecerem novas, e outros detalhes assim, coisas que uma criança do pós-guerra, em Blumenau, sempre acabava ouvindo.
Havia,
até, uma piada que eu achava engraçada e tétrica, que circulava
nessa época, sobre a história de se mandar pacotes com comida para
a Alemanha. Uma família escreveu para seus parentes de lá
informando que seguia pelo correio (via navio) uma caixa com pó para
pudim. Acontece que a avó da família, que vivia aqui em Blumenau,
morreu. Ela sempre tinha pedido que, quando morresse, fosse cremada,
e suas cinzas enviadas à Alemanha. A família cumpriu seu desejo:
cremou a avó, colocou suas cinzas numa caixa, e enviou a mesma, via
aérea, para a Alemanha. Seguiu uma carta, também, explicando
que estariam chegando as cinzas da avó, só que tal carta se
atrasou. Quando chegou a caixa com as cinzas, os parentes de lá
acharam que era a caixa com o pó para pudim, e não deu outra:
fizeram pudim com as cinzas da avó, comeram a avó. Piada sem graça
que circulava em Blumenau na década de sessenta.
Pois
bem, a Alemanha, para mim, ainda era aquela do pessoal que fez pudim
com a avó, quando, um dia, na igreja, o padre falou sobre uma
coisa estarrecedora: uma cidade fora brutalmente dividida por um muro
que separara pais de filhos, irmãos de irmãos, amigos de amigos.
Pintou as coisas com as piores cores (e as cores eram feias mesmo), e
convidou o pessoal da missa para ir ver uma exposição fotográfica
sobre o assunto, que passava pela cidade, e que estava exposta no
nosso Teatro Carlos Gomes.
Um
dia ou dois depois, aquilo ainda estava na minha cabeça, e avisei
minha mãe que ia ver a exposição. Creio, hoje, que aquela foi a
primeira vez que entrei no nosso imponente Teatro Carlos Gomes,
que parecia muito mais imponente ainda por eu só ter nove
anos.
Gente,
eu não esqueci daquilo até hoje! Sem quem me orientasse na
exposição (fora sozinha), devo ter passado horas e horas olhando
aquelas fotos e lendo as legendas. Aquilo era muito mais chocante do
que o padre falara: as imagens tinham uma força como eu não sabia,
uma força que as décadas seguintes aproveitariam com força nos
meios de comunicação, mas que, naqueles tempos de rádio, a gente
ainda não conhecia.
Cruamente
cruel, lá estava o muro tapando as janelas dos prédios, deixando os
moradores sem luz. Sem disfarces, lá estavam as guaritas com os
soldados armados, que vigiavam a faixa de cem metros, cheia de
obstáculos, onde não se podia passar. Lá estavam os rolos de arame
farpado, as armadilhas, o terreno minado. E, o que era pior para mim,
lá estava o muro interrompendo as ruas – e se interrompessem a
minha rua, e eu não pudesse mais ir para a escola, ou na casa da tia
Fanny? A agressão daquelas fotos entrou na minha pequena alma de
nove anos com toda a força: acho que foi a primeira vez que dei de
cara, mesmo, com a crueldade. O padre já tinha falado que muitas
pessoas estavam morrendo metralhadas, por lá, na tentativa de fugir
para Berlim Ocidental, e minha imaginação fértil via as pessoas
correndo sob o foco dos holofotes e sendo ceifadas por armas
poderosas. O horror daquilo ficou indelevelmente marcado na minha
vida. Creio que, quando saí de lá, senti alívio: Berlim era muito
longe, numa remota Alemanha, país onde se comiam avós pensando-se
que eram pudins – aquilo nunca aconteceria na minha pequena
realidade de Blumenau.
Quase
trinta anos depois, em 1989, quando o muro caiu, eu senti um alívio
imenso. A minha angústia de 1961 vivera comigo todos aqueles anos. E
eu exultei como os jovens alemães de 1989 exultaram, e, meses
depois, vi um pedacinho de muro que um rapaz de Blumenau havia
recebido como souvenir: ingênuo e inofensivo, o pedacinho de muro
estava numa caixinha de joias,
apoiado sobre algodão. Não parecia ter aquele horror de 1961, mas
eu sabia que tinha.
Blumenau,
28 de junho de 1997.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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