Gozo
doentio
* Por
Eduardo Oliveira Freire
“O
bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas
de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos
quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia,
também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento
dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa
cidade feliz.” A Peste, Albert Camus.
I.
Primeiro
surgiram notícias isoladas de que algumas pessoas tiveram uma doença
repentina e estranha. Com o tempo os casos foram aumentando. De
repente, multidões se encontravam estendidas no chão gemendo
freneticamente, com os rostos extasiados de prazer e gozando até a
morte.
Os
que escapavam fugiam para regiões desabitadas, e formularam
regras rígidas da moral, bons costumes e religiosas para sobreviver.
Achavam que isto poderia aumentar a imunidade e dificultar a
disseminação do vírus ou bactéria. Não adiantou, ao longe se
ouvia milhões de pessoas tendo múltiplos orgasmos. Os berros eram
tão intensos, que os animais ficavam escondidos. Sacerdotes e juízes
pregavam que a causa do mal da sociedade era o desejo carnal.
Qualquer manifestação sexual representava a pena de morte. Existiam
fogueiras de corpos em cada esquina. Todos se vestiam com armaduras,
para que a doença não penetrasse na pele. Orações em todas as
partes. O cheiro do medo impregnava o ambiente.
II.
Dia
nublado. Aparentemente a cidade estava tranquila. Os transeuntes
voltados para si mesmos.
Ele
e ela andam pela rua, perdidos em suas lembranças. Esbarram-se
e, mesmo com as armaduras, seus corpos tremem. Sentem pavor da
peste e se distanciam, já que são casados com outras pessoas. Mas,
uma esperança os acalenta. E se, por um milagre, não fossem
contagiados? Aproximam-se e fogem para um lugar mais ermo. Os
amantes se despem e transam na busca do prazer proibido. Minutos
depois, cumprimentam-se perplexos por não estarem contaminados pelo
gozo doentio.
Em
outras partes do mundo, no mesmo dia, os casos foram
florescendo.
Um
rapaz deitado no campo, olhando as nuvens, masturba-se e suando
percebe que está bem.
Duas
amigas que brincando, brincando, desvendam-se e ficam contentes
por estarem sadias.
O
despertar do desejo de um casal idoso numa manha ensolarada.
Um
beijo inesperado de dois rapazes que viviam brigando...
III.
A
cura se espalhara, assim como a praga. Ninguém entendeu o que
acontecera. A alegria voltou às ruas. As armaduras foram largadas .
Como
sempre, alguém tentava explicar. Mas, para que entender?
Só
sei que tudo voltou ao normal. Vamos aproveitar a cura, por enquanto!
Se
alguém achou a narrativa parecida com outros enredos, deve lembrar
que os acontecimentos sempre se repetem ao longo da história. As
piores pestes são a ignorância, a intolerância e o ódio e seus
bacilos estão adormecidos em nosso inconsciente, esperando o momento
certo de despertarem. Por isso, precisa-se nunca esquecer e nos
manter atentos para não reproduzirmos os mesmos erros.
*
Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural
e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/
Na rua, não sei, mas em lugares discretos, o prazer ou não deve ser a escolha de cada um.
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