Viagem
de palavras
* Por Mara Narciso
Maria
Milena Narciso Cruz nasceu em 11 de maio de 1934 e morreu em 28 de
janeiro de 2003. Ela não queria viver muito, e dizia que não faria
diferença morrer com 68 ou 72 anos. E assim fez: aos 68 anos foi
colhida por um glioblastoma multiforme – câncer no cérebro -, que
ceifou sua vida em 32 dias. Partiu, mas nos deixou suas palavras, e
nelas o gosto por viajar.
A
minha mãe era filha de Petronilho Narciso e Maria do Rosário de
Souza Narciso. Morreu há quase 15 anos e vive em mim, nos genes e na
memória. Discreta, reservada, falava que suas tias ficaram velhas
aos 40 anos, pois, viúvas, vestiam-se de preto, encurvavam-se e,
abraçadas ao missal, iam apenas à igreja.
Tinha
pavor dos micróbios e quando voltava do cemitério, chegava na ponta
dos pés e jogava sapatos num canto e roupas no outro. Nos vírus e
bactérias acreditava, mas não tinha crendices. Contava das
benzedeiras com ramos que murchavam - de bater no benzido, não eram
maus espíritos coisa nenhuma -, dos banhos de folhas, dos chás, mas
gostava mesmo era da ciência, das vacinas, dos médicos e remédios
tradicionais. Esterilizava com álcool e fogo a bacia para nos dar
banho, e nos ensinou a lavar as mãos antes e depois de usar o
banheiro, sempre que chegasse da rua, quando pegasse em dinheiro,
sapato, pano de chão ou qualquer coisa suja.
Assistiu
um amigo cair em sua frente. Era o 1º sinal de sequela da
poliomielite. Traumatizada, desde então, vivia atrás de uma vacina
para nos salvar. Um dia, chegou com duas ampolas e nos vacinou.
Vacina Salk, ela nos disse.
Gostava
muito de dormir e de comer e dizia: se fome e sono forem saúde,
estou sadia. A outra coisa era viajar. Nunca recusou um convite e
viajou tudo que pôde. Em poucos minutos estava pronta. Qualquer
viagem em sua companhia ficava boa, pois Milena transformava um
piquenique num grande passeio. Passear em qualquer roça já era bom
para ela. Uma areiazinha para pousar os pés, água fresca para
molhar as canelas, e frutinhas do mato para comer ficaram tatuadas
nas minhas memórias afetiva, visual, olfativa e gustativa. E se
adoro os frutos do cerrado, começando pelo murici, depois araçá
(que plantei no meu jardim), mangaba, panã e outros, foi por obra
dela. Que cheiro, que sabor! Vamos passear no mato para catar
cagaita?
Espírito
livre, ainda que encurralada num casamento infeliz, não se deixava
amordaçar, e nas viagens se libertava, mesmo presa. Aos 50 anos, deu
seu grito de guerra, “Libertas que sera tamen”, rompeu com algo
que a torturava, e que antes não tivera forças para quebrar. Justo
ela, que nos ensinava o Hino da Independência: “os grilhões que
nos forjava, da perfídia, astuto ardil, já brilhou a Liberdade, no
horizonte do Brasil”. Daí viajou com gosto e vontade, para depois
nos contar com minúcias de cientista. Era quando viajava de novo,
explicando o roteiro, a viagem em si, as demoras, os prazeres, as
expectativas, as chegadas.
Com
vocabulário de sonhadora racional de tendências esquerdistas e
quase nada de preconceitos, fazia uma fotografia colorida do lugar, o
qual se orgulharia da sua descrição. A cena ficava mais bonita
quanto ela contava: a luz, o céu, as nuvens, o vento, o falar das
pessoas, o odor. Tudo gostoso, mas as comidas, os ingredientes, a
aparência, os sentidos despertos, a salivação, o sabor, a textura
a passear pela boca, o mastigar, o engolir. Assim eram as explicações
e as interações. Nenhum lugar ou alimento seria igual depois de
passar pelo crivo de Milena, ficava muito melhor, pois ela escolhia
as boas palavras. Tédio devido ao detalhamento? Nunca. O convívio
nos enriquecia.
Milena
não gostava de escrever relatório médico, sentia-se incomodada em
ser analisada, tinha pavor de microfone e discurso, mas estando em
seu elemento, nos levava até suas experiências de vida e viagens,
de norte a sul do Brasil, América do Sul, América Central e Europa
tradicional. Nada será como antes com Milena, mas tudo será bem
menos brilhante sem ela.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Bacana conhecer um pouco de sua saudosa mãe, Mara. Abraços.
ResponderExcluirLindo texto, amiga, com seu empenho em manter viva a memória de sua mãe.
ResponderExcluirE continue nos alertando sobre suas publicações no Literário lá no Facebook. Muitas vezes, na correria, acabo não visitando, ou mesmo esquecendo de ir ao Literário. Grande abraço!!