Sujeito Zero (16)
* Por Sergio Vilas Boas
Seu
Edmundo, Inês e suas
três filhas – Clara, Ava e Alma – moraram no Jardim Nova York
nos anos setenta, mas não nos fundos da casa de Carmem e Alfredo.
Alugavam a casa hoje pertencente a João Vital, que foi a maior e
mais bonita da Rua C, com paredes brancas homogêneas, grades verdes
cercando uma aconchegante varanda sobre o teto da garagem. As janelas
da frente, amplas, eram de vidros foscos. A que dava para a outra
entrada, a da cozinha, era pentagonal, dividindo cores: amarelo,
vermelho, verde, azul e violeta. Ao redor das grades ficavam os
canteiros de damas da noite, samambaias e antúrios.
Na época, Seu Edmundo já
exibia um talento incomum para lidar com roseiras e os vizinhos
apreciavam muito seu trabalho. Depois que ele foi morar sozinho na
casa de fundos, seu espaço de cultivo estreitou-se. Mas ao longo do
corredor de acesso havia um canteiro de uns cinqüenta centímetros
de largura por dois metros de comprimento.
Carmem sempre quis que aquele
pedaço de terra fosse transformado em jardim. O consentimento de
Alfredo, no entanto, demorou a vir. Para “evitar trabalhos”,
Alfredo preferia tudo pavimentado como pista de rodovia. Quando
consentiu, Seu Edmundo não perdeu tempo: plantou jasmins, damas da
noite, antúrios, avencas, violetas e rosas. Foi a maneira que ele
encontrou de fazer história ali.
Em uma de suas raras visitas,
a sempre ocupada viajante Alma encontrou o pai sujo de terra até os
olhos.
- Sabe o que estou fazendo
aqui? (Ele
perguntou).
- Plantando. (Mas
ela estava certa de que a resposta não podia ser tão óbvia).
Propositalmente, creio, Seu
Edmundo deixou-a algum tempo com a interrogação explícita na
testa, para então corrigi-la:
- Enxertando.
Naquele tempo, Alma já era
formada em biologia. Mas ele tomou conta:
- Quer ver como coloro flores?
Claro que ela queria ver.
Aquilo a encantava. Alma nunca exerceu a biologia, mas criou o hábito
de observar os fenômenos triviais, e não seria estúpida a ponto de
desacreditar o pai em sua proposta de obter cores diferentes de rosas
através de sua engenharia genética autoral.
Ela embarcou no conto,
pensando que podia manipular Seu Edmundo, a fim de vê-lo desenvolto
em seu habitat. Com um canivete afiado que reluzia ao sol do meio-dia
de outono, ele cortou um galho de roseira vermelha de uns quinze
centímetros. Tirou fora folhas, espinhos, deixou-o limpo; enterrou o
galho em um saco plástico (daqueles de leite) cheio de terra escura.
Apertou a terra na base do caule com os polegares, compactando-a.
- Este caule é a mãe
adotiva.
Ele não estava nem um pouco
intimidado pelas ciências da filha diplomada, que o acompanhava
intrigada.
Ele então fendeu um T mais ou
menos no meio do palmo de caule enterrado no saco. Delicadamente,
abriu as pontas e obteve o formato de uma vulva.
- A mãe vermelha vai adotar
uma filha branca. (Prosseguiu
didático).
Havia pelo menos umas três
roseiras brancas altas e bonitas. Numa delas, entre o caule principal
e um ramo com cinco folhas, ele mostrou à filha um carocinho verde,
o começo de um broto, exatamente onde ia aparecer outra rosa.
Retirou a borbulha (gema ou broto) do caule como um relojoeiro
extraindo uma engrenagem minúscula.
Levou a gema até o saco de
terra sem encostar os dedos na parte branca, a que ia se juntar à
vulva aberta no caule. Uniu as peças num encaixe perfeito, que
também impressionou a filha “estabanada e culta”. Ele conseguia
realizar algo complexo de modo corriqueiro. Uma quase redundância,
no caso dele – o corriqueiro em pessoa. Mas um absurdo para
sujeitos “não-comuns”, incapazes de aceitar o engenho das
trivialidades.
Ele sustentou a atadura com os
dedos enquanto puxava um pedaço de barbante de ráfia previamente
cortado. Enrolou o barbante várias voltas, nas partes de cima e de
baixo da junção, deixando de fora somente o olho da gema. Segundo
Alma, era uma bobina impecável, uma verdadeira peça de artesão.
- Vai ficar verdinho daqui a
uns 20 dias... (Ele
garante).
- Sim, e a gente talvez tenha
uma rosa de outra cor. (Ela
atropela).
- Talvez?
- Com certeza, quero dizer.
(Redireciona).
Que cor, pai?
- Ah, isso é surpresa.
Seu Edmundo cortou uma lasca
no topo do caule, logo acima do enxerto, sobre o qual brotariam as
primeiras mudas. Nasceram rosas cor-de-rosas, algo assim de um tom
que não se encontra no mercado global.
*
Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo
Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário
(ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N”
(1997), “Biografias
& Biógrafos”
(2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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