Mulher
sem boca
* Por
Danielle Arantes Giannini
De manhã, abri a porta do
elevador e dei de cara com a mulher, mulher sem boca, bem cedo, bom
dia. Expeli a saudação matinal aos sussurros e virei de costas
porque a falta de boca da mulher me incomodou. Ela só tinha testa,
dois olhos ainda inchados do sono e um nariz qualquer. A falta de
boca chamava a atenção. Pensei que tipo de mulher seria aquela,
saiu de casa sem colocar a boca. Mulher apressada certamente, mulher
descrente de tudo, afinal para que boca se nada na vida sai como
planejado, mulher sem vaidade talvez. Podia ter se servido de um
mísero batom e não o fez, sabe-se lá o por quê.
Saí do elevador com passo
apressado, igual gente importante, para não me perder mais em
conjecturas sobre a boca que a mulher não tinha. Mas não teve
jeito, vi tantas bocas desfilando nas ruas, que foi impossível
deixar de notar, nunca as bocas tinham se feito tão presentes. Para
espanto meu, observei que outras mulheres andavam sem boca; fosse a
falta de uma bolsa, de sapato até, mas sair de casa sem boca era o
fim. A variedade de bocas que passou por mim foi enorme, bocas de
todos os tipos e tamanhos, bocas grossas, finas, ágeis, molhadas,
ressecadas, moles, caídas, risonhas, todas bocas.
Em poucos minutos deu para
notar que a boca da moda era a carnuda, estava à venda nas melhores
lojas do ramo, injetável, fácil de aplicar. Essa boca impunha
respeito, dava segurança às mulheres, afinal não era um mero traço
abaixo do nariz, era volumosa, esbanjava sensualidade. Imaginei que
palavras saíam daquele tipo de boca. Nem todas as bocas que as
mulheres carregavam eram exuberantes assim, havia outras mais
modestas, não tão intensas. Eram mulheres que escondiam suas bocas
normais atrás de cores variadas, umas brilhantes, em tons de rosa,
marrom, carmim. As bocas vermelhas, caprichosamente desenhadas,
deviam levar um bom tempo até ficarem prontas para sair à rua;
ainda bem que para o caso de emergência as cores podiam ser
reaplicadas a qualquer momento e em todos os lugares, com o perdão
da etiqueta.
Triste mesmo foi esbarrar em
uma boca rachada, não sangrava, mas tinha um couro grosso,
ressecado, não via água há quanto tempo, cogitei. A mulher que a
transportava estava com olhos cansados, talvez estivesse ela mesma
rachada por dentro.
Conforme eu caminhava, mais
bocas apareciam, situação insuportável essa de topar com bocas
aqui e ali, bocas assim e assada; se fossem os olhos a saltar do
rosto das pessoas, mas eram bocas. Bocas que se movimentavam
freneticamente, outras lentas, outras ainda fechadas. Engraçado foi
ver bocas que executavam risadas, gargalhadas, essas eram bocas que
não se importavam de parecer tortas por uns segundos, tempo
suficiente para se ver tudo dentro delas, desinibidas. No
restaurante, vi uma boca nervosa sentada perto do bufê de saladas,
não parava de mastigar alface, nem sei quanto tempo permaneceu ali
naquele exercício mandibular. Na mesa ao lado, uma boca severa
atracada a um pedaço de carne mal-passada, escorria sangue de animal
abatido. No toalete, mais bocas, todas dispostas diante do espelho,
sendo redesenhadas, para a salvação das mulheres.
Como havia bocas para
escolher, bocas amenas, bocas raivosas, bocas culpadas, bocas que só
se dignavam a sussurrar qualquer coisa indecifrável ao serem
interpeladas por outras bocas, bocas masculinas também, de tipos
variados, mas nem tanto. De umas saíam músicas, de outras
lançavam-se impropérios, umas permaneciam em posição de bico por
longo tempo, algumas não era bocas. Depois de bocas e bocas, nada me
chocou tanto naquele dia quanto a boca que vi sendo carregada como um
fardo por uma senhora que vestia trapos e nada mais, era uma boca cor
de pele, sem dentes... uma boca sem dentes, nada entrava nada saía
daquela boca maltratada. Lembrei-me imediatamente da mulher sem boca
no elevador e concluí que era melhor não ter boca a ser portadora
de uma boca sem dentes. Nunca mais saí de casa sem verificar no
espelho se estava carregando minha boca comigo, para o caso de
precisar.
*
Jornalista – blog http://www.lugaresdomundo.com
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