Cheiro
de goiaba
* Por
Urda Alice Klueger
No
finalzinho de 1959, meu pai nos trouxe de volta para Blumenau, depois
de termos morado por quase quatro anos em Balneário Camboriu. Com as
confusões que uma mudança acarreta, meus pais perderam a data de
matrícula na escola onde eu deveria estudar, e só houve um
jeito de eu não perder o ano: fui matriculada junto com o Primeiro
Ano Repetente, na Escola São José, das queridas Irmãs da
Providência de Gap, no bairro Garcia, em Blumenau.
Eu
estava assustadíssima naquele dia primeiro de março de 1960, quando
me encaminhei para a escola, acompanhada da minha prima Ruth. Usava
uniforme novo em folha, e minha mãe havia costurado para mim uma
linda pasta de pano vermelho. Naqueles idos, ia-se descalço para a
escola. Havia bem uns quatro quilômetros para andarmos, e o fizemos
passando por dentro de todas as poças de lama, até que, numa das
tentativas, eu dei a maior escorregada e quase que me espatifo dentro
de poça colossal. Tremi nas bases: o que aconteceria se tivesse
caído na lama, e chegasse toda suja na escola? Fiquei ainda mais
assustada, e me grudei na Ruth, já veterana do segundo ano.
Tudo
era novidade, na escola. Minha primeira professora, a querida Dona
Maria Pisa, não sabia que havia uma aluna novata na sua turma
problemática. Quando digo que a turma era problemática é porque
era mesmo – tinha moças e moços na sala, que repetiam o primeiro
ano pela sétima, oitava vez. Alguns deles abandonaram a escola pelo
meio do ano, pois haviam completado 14 anos e tinha chegado a
sua hora de irem para a fábrica, destino de quase todos no nosso
bairro operário.
Achando
que todos os alunos eram repetentes e sabiam das coisas, Dona Maria
Pisa não deu as informações que se dão aos novatos e, quando
bateu o sino para o recreio e a turma se jogou porta afora, eu achei
que era para ir para casa. Rapidamente, recolhi meus cadernos na
pasta vermelha, e desci as escadas junto com todo o mundo.
Como
riram de mim! Formou-se um círculo à minha volta, a gozar da minha
cara pela gafe, naquela crueldade ingênua que é tão peculiar às
crianças. Minha prima Ruth me acudiu, e então alguém reparou
na minha pasta vermelha – ninguém tinha uma pasta assim,
todos tinham pastas de couro marrom, e a gozação recomeçou.
Foi
um começo bem traumático, mas logo passou. Em poucos dias eu estava
escrevendo direitinho, desenhando direitinho, fazendo as lições
direitinho. Por estar junto com os repetentes, não tive cartilha –
recebi, logo, um primeiro livro de leitura, que li de cabo a rabo no
primeiro dia, ao contrário dos outros colegas, que não terminaram
de lê-lo até o final do ano. Creio que, até o fim de março,
já estava mais que ambientada na escola, e tenho a maior saudade
daquele tempo de março, quando a sala de aula recendia à goiaba.
Todos
levávamos lanches, grandes sanduíches de lingüiça ou de banana
frita, envoltos em guardanapos de pano, pois o papel era raro e o
plástico ainda não surgira nas nossas vidas. Havia quem levasse
garrafinhas de café, e bananas, e batatas assadas, e ovos
cozidos, mas o ingrediente mais fiel nas nossas merendas, no começo
do ano letivo, eram as goiabas, as grandes goiabas verdolengas que
todos podiam apanhar nos fundos das próprias casas. Quarenta alunos
carregando goiabas nas pastas impregnava o ar da sala de aulas de um
enjoativo e maravilhoso cheiro de goiaba. Eu associei para sempre
aquele cheiro delicioso aos marços na escola. Por estes dias, ganhei
uma linda goiaba verdolenga, e cheirei-a, enlevada: ela me trazia, à
primeira cheirada, todos os outros cheiros, o de cadernos novos, o de
lápis recém-apontados, o da tinta com a qual o livro de leitura
fora impresso, os cheiros de um passado feliz. Tantos anos depois, o
aroma de uma goiaba é capaz de me botar de volta numa sala de aula
do passado, e de me fazer lembrar da minha pasta vermelha e dos
vexames do primeiro dia de aula.
Para
quem está curioso com o final da minha aventura, eu conto: passei a
perna em todos os repetentes; fui a primeira aluna da sala. Tive a
maior das surpresas quando, no final do ano, a Irmã Diretora me
mandou em casa, buscar sapatos, para fazer parte da foto que iria ser
tirada com os melhores alunos do colégio. Guardo tal foto com o
maior carinho – eu acho que ela tem um pouco de cheiro de goiaba.
Blumenau,
22 de fevereiro de 1997.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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