A
moça do sonho
* Por
Roberto Beltrão
O
sonho se repetia, se repetia, noite após noite. Tudo estava escuro e
eu me via sozinho, em frente a um portão de grades com belos
detalhes e sustentado por duas colunas de ferro decoradas com
estátuas de anjos. Meninos gordinhos com asas, ajoelhados e olhando
para o céu. Para além do gradeado, mal dava para ver as silhuetas
de coqueiros altos em fila no terreno. Queria ir embora dali, mas não
resistia à curiosidade e colocava o rosto entre as barras metálicas
para tentar enxergar o que havia do lado de dentro. De repente, no
meio da penumbra, surgia a figura de uma mulher jovem, com longos
cabelos loiros e vestido decotado vermelho. Tinha o rosto delicado,
lábios pequenos, olhos claros e tristes. Acenava me chamando para
entrar. Eu desejava atender ao convite, mas um grosso cadeado selava
o portão. De repente a moça virava de costas e ia embora. Eu
esticava a mão, gritava pedindo para ela voltar… e neste momento
sempre acordava agoniado, com o suor pingando da testa.
Naquela
época, meados da década de 1980, eu morava na Casa do Estudante –
abrigo para rapazes do interior que vinham fazer faculdade na
capital. Foi um tempo de sacrifício, mas valeu para conquistar o
diploma de Direito. Meu companheiro de quarto já não aguentava me
ouvir falando enquanto dormia. Lourenço dizia que não era bom ficar
só com a cara enfiada nos livros, era preciso aproveitar o Recife,
ir ao cinema, conhecer os bares e as boates, paquerar. Mas eu me
esforçava o máximo para terminar o curso sem atrasos, pois desejava
voltar logo à minha cidade, abrir um escritório, começar a
trabalhar. Foi bastante desagradável quando recebi a primeira nota
baixa. E ele sentenciou:
– Tá
vendo, Rodolfo! Fez prova ruim porque não dorme direito. Precisa se
divertir, relaxar um pouco, até para estudar melhor, cara!
Então
topei a proposta de Lourenço: no sábado, saímos para uma farra à
noite. Ele até havia conseguido um Fusca emprestado com um tio para
circularmos à vontade. Fomos logo ao bairro das Graças onde,
naquela época, existiam muitos bares. Não demoramos a nos entrosar,
pois meu colega conhecia bastante gente. Lá para as tantas, alguém
nos chamou para uma festa que estaria rolando num apartamento na Rua
da Aurora, no Centro.
– Vamos
nessa? Lá vai estar cheio de meninas, as mais gatas da faculdade.
Como
dizer não ao apelo? Concordei, apesar de já estar meio cansado.
Perguntamos à turma como chegar ao endereço da festa e partimos.
Acontece que ele era menos entrosado com os caminhos do Recife do que
imaginava e começou a dar voltas e voltas nas ruas desertas sem
acertar o rumo. E nada de dar o braço a torcer. Repetia apenas que
eram só mais dois ou três cruzamentos para chegar, que ficasse
tranquilo, pois tudo estava sob controle. Passava de meia-noite
quando entramos numa via larga. A placa quase escondida pelos galhos
de uma árvore grande dizia: Avenida Mário Melo. De longe enxerguei
uma moça que andava tranquila na direção contrária à nossa.
Seguia na calçada junto a um muro longo e alto. Estava de blusa
branca, calça jeans, sandálias baixas. Quando o carro foi chegando
mais perto, meu Deus do céu, reconheci o rosto, os lábio, os olhos.
– Para,
para, Lourenço! É a menina que vejo nos sonhos!
– Tá
doido, rapaz? Não tô vendo ninguém.
– É
sério, cara! Mete o pé no freio!
Nem
esperei ele estacionar direito e abri a porta. Andei ligeiro para
alcançar a moça, fui calado para não assustá-la. Parecia não me
notar e, sem pressa, dobrou uma esquina justo onde acabava o muro
alto. Fiz a mesma curva, mas a vi na rua estreita e escura. Andei por
alguns instantes tentando encontrá-la. E mais à frente, para
meu espanto, me deparei com o mesmo portão de grades que também via
em meus pesadelos: os detalhes no ferro retorcido, as colunas
enfeitadas com os meninos alados gorduchos, o cadeado impedindo a
entrada. Era ilusão?
Senti
nas mãos o frio das barras metálicas. Nelas encostei o rosto para
tentar distinguir o que havia para além da grade. Percebi uma
coleção silenciosa de túmulos simples e jazigos ornamentados,
distribuídos em alamedas. Um cemitério antigo cheio esculturas de
mármore e aquelas palmeiras altas em fila. Era real.
E,
no meio daquele cenário mudo, estava a moça a quem procurava pouco
antes. Agora sorria e acenava para que eu entrasse. Entrar como?
Estiquei a mão para alcançá-la e ela veio em passos miúdos. Notei
o coração querendo sair do peito e um arrepio veio encrespar a
espinha. Então o berro me tirou do transe:
– O
que tu tá fazendo aí, Rodolfo? Sai daí, rapaz!
Lourenço
desceu do Fusca e me puxou pela cintura, me afastando um pouco do
portão. Nesse momento juro ter visto uma transformação absurda no
rosto da moça, então contrariada na vontade de me ter ao lado dela:
a face delicada passou a ter os traços sinistros de uma caveira!
Quis
correr, mas a mão do espectro atravessou por entre as barras de
ferro e me segurou pelo cotovelo. Tinha uma força sobrenatural e um
toque gelado que me paralisou. Fui tomado por uma tontura, a sensação
de que a morte viria me abraçar. Meus olhos foram fechando…
Despertei
no banco do passageiro do Fusca. Meu amigo dirigia apressado e não
parava de falar:
– Cara,
que coisa mais doida foi essa? Parecia um maluco parado na frente do
Santo Amaro. Nem me escutava, tava feito zumbi olhando para o nada,
feito abestalhado. E nem bebeu tanto assim. O que
foi
que deu em você? Quer me matar de susto?
Como
explicar aquela situação? Disse apenas que havia me sentindo mal,
uma maluquice momentânea, que esquecesse. Ele demorou a se
conformar, e depois não me perguntou mais nada. Até terminar a
faculdade, saí outras vezes com Lourenço, sim. Mas sempre durante o
dia. Fomos à praia, por exemplo. Sempre bem longe do cemitério…
*
Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife
assombrado”.
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