Reverência às avessas
A
única forma válida de manifestação de reverência pelos
escritores que admiramos é a leitura dos seus livros. E por que faço
essa enfática afirmação, que parece para lá de óbvia? Simples!
Porque esse não é o procedimento usual de muitas pessoas que
conheço.
Há
gente que tem bibliotecas de razoável porte, com obras de
reconhecido valor literário (não importa se de clássicos ou de
autores contemporâneos) e que, no entanto, não se dá ao trabalho
de ler, já não digo um único volume, mas uma só linha de qualquer
deles. Para mim, leitor compulsivo, isso é estranho. Estranhíssimo!
Não
é esse o tipo de “cliente” que pretendo conquistar. Sequer chamo
essas pessoas de “leitoras”, já que aquilo que menos fazem é
ler. Apesar do meu sucesso como escritor depender, basicamente, do
volume de vendas dos meus livros, dispenso quem compre o que
publiquei apenas para manter em uma prateleira, sem que se dê ao
trabalho de apreciar (ou detestar) o que escrevi.
Sei
que meu editor vai ficar louco com essa afirmação politicamente
incorreta, mas não me importo de perder uma venda, ou várias (e,
por conseqüência, meu porcentual de direitos autorais), se quem se
dispuser a comprar alguma das obras que escrevi o esteja fazendo,
apenas, a título de ostentação, quem sabe, por esse ser, talvez, o
“produto literário da moda”.
Há
pessoas que têm reverência até idólatra por livros, mas... como
meros objetos (quem sabe, de decoração). Preocupam-se com a capa,
com a encadernação, com o aspecto estético dos volumes que
adquirem e com outras tantas filigranas, menos com o essencial. O que
importa, todavia, não é nada disso, mas o conteúdo da obra, e
apenas ele.
Lima
Barreto, no livro “Nova Califórnia”, nos traz um saboroso conto,
intitulado “A biblioteca”, que ilustra bem esse tipo de
reverência às avessas por escritores. O personagem central dessa
história, Fausto Carregal, herdou precioso acervo bibliográfico de
seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, que, por sua vez, havia
herdado boa parte do seu genitor. Mantinha os volumes sempre limpos,
perfeitamente conservados, como se tivessem vindo das livrarias,
novinhos em folha.
Havia
entre eles autênticas raridades, como o primeiro tratado de Química
escrito por Lavoisier, entre outras. Eram, na verdade, livros
técnicos e nem o Conselheiro – que era tenente-coronel do Corpo de
Engenheiros do Exército e lente da Escola Central – e muito menos
seu filho, mero balconista de uma loja, entendiam seu conteúdo.
Fausto, porém, nutria a esperança que algum dos seus filhos (ou os
três) estudasse e viesse a entender dos assuntos tratados.
Todavia,
frustrou-se. Nenhum deles concluiu, sequer, as primeiras letras. E,
sem serem lidos por ninguém, aqueles preciosos livros, pelos quais o
personagem nutria mística adoração, por lhe trazerem à memória
seu pai e seu avô, pelos quais sentia imenso afeto e profunda
saudade (pois já haviam morrido), não tinham a mínima serventia.
Numa
certa tarde, em que se encontrava sozinho em casa, Fausto tomou uma
dramática (e para ele, dolorosa) decisão. Já que não havia
leitores para o que intuía serem raras preciosidades (e eram), houve
por bem dar fim a elas. Comprou um latão de querosene, levou para o
quintal, com toda a reverência e cuidado, como se transportasse
frágeis bebês, todos os livros. Empilhou-os cuidadosamente (diria
que com amor), embebeu-os de combustível e... ateou fogo.
Lima
Barreto chega à seguinte conclusão, ao cabo da narrativa: “São
deuses os livros, que precisam ser analisados, para depois serem
adorados, e eles não aceitam a adoração senão dessa forma”. Os
meus, por conseqüência, também não aceitam ser “adorados”
senão mediante leitura.
A
única forma válida, e lógica, de reverência pelos seus escritores
preferidos, é, pois, lendo o que escrevem. É a crítica honesta, o
debate inteligente das ideias expostas, a refutação respeitosa
daquilo com o que não se concorda etc. Essa é a maneira, aliás,
pela qual rendo homenagens aos responsáveis diretos por tudo o que
sou e o que sei.
Os
livros da minha volumosa (e caótica) biblioteca estão todos
rabiscados. Tenho o hábito de sublinhar os trechos que me empolgam,
sobre os quais, sempre que posso, escrevo alguma crônica, ou ensaio
(quando exigem considerações mais detalhadas). Faço comentários à
margem, principalmente sobre o que não concordo. Ou seja, deleito-me
com o conteúdo, sem me importar nada, nada com a forma.
É
o diálogo possível que estabeleço com os escritores (alguns mortos
há já séculos), concordando ou discordando das suas ideias
e tenho certeza que é dessa forma que eles gostariam que suas
produções intelectuais fossem lidas. É esse, também, o tratamento
que gostaria que meus leitores (e não meros “clientes”) dessem à
minha produção literária.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Na internet os leitores são invisíveis, intencionalmente. Tudo veem e muito leem e pouco escrevem. Assim as coisas funcionam por aqui.
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