Possibilidade estética
A
beleza, a sabedoria e a perenidade do espírito criativo humano estão
ao nosso alcance, seja qual for a nossa condição atual, mas exigem
de nós um ato volitivo positivo, um certo esforço, uma ação
concreta, para que as alcancemos e usufruamos. Não caem do nada. Não
são inatas. Não se impõem. Têm que ser buscadas, incansavelmente,
para serem usufruídas em sua plenitude e nos qualifiquem e redimam.
São meras possibilidades à espera de realização.
Estas
palavras, de Jorge Luiz Borges, não somente ilustram melhor o que
afirmei, como até explicam: “Pegar um livro e abri-lo contém a
possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas em um
livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente.
Que é um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um cubo de
papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara:
creio que ele muda a cada instante”.
O
mesmo raciocínio vale para uma tela, de qualquer dos mestres das
artes plásticas. Se não buscarmos nos informar a propósito das
técnicas de pintura, não teremos condições de apreciar, com a
devida inteireza, essa manifestação de talento. Enxergaremos,
apenas, um quadro de dimensões variáveis, retratando pessoas,
objetos e cenários (não raro, nem isso) que seriam captados com
maior precisão e nitidez por um bom fotógrafo.
Em
alguns casos, veremos, apenas, o que nos parecerá um conjunto de
borrões, ou figuras distorcidas e desproporcionais, ou formas
geométricas variadas, que não aceitaremos como sendo “arte”.
Escaparão de nossos olhos e mentes as nuances dessas obras. Não
saberemos apreciar, por exemplo, o senso de proporção, por não
atentarmos a ele. Não perceberemos o jogo de luz e sombra. Escapará
da nossa observação a perita combinação de cores etc.etc.etc.
O
mesmo vale em relação a todas as outras artes. Afinal, a beleza é
subjetiva. O que nos parece belo e perfeito pode não parecer assim a
quem tenha padrões estéticos (no caso, gosto) diferentes dos nossos
e vice-versa. Já escrevi, há algum tempo, a respeito, mas nada me
impede de retornar ao tema que, para mim, tem e sempre terá
relevância e pertinência.
Frise-se
que a beleza não se manifesta, apenas, pelo visual. Não a
detectamos “só” com os olhos. Outros sentidos (diria, todos) nos
possibilitam contato íntimo com ela. O ouvido é um deles e,
convenhamos, não o mais desprezível.
Ouçam,
por exemplo, de olhos fechados, um bom poema, declamado por quem
saiba lhe dar a devida ênfase. Ou se disponham a ouvir determinadas
sinfonias, ou mesmo canções populares de reconhecida qualidade. A
alma parece flutuar fora do corpo, nesses momentos de encantamento, e
não raro logramos entrar até em estado de êxtase.
Quanto
à possibilidade estética que existe (potencialmente) no conteúdo
de um livro – a que foi destacada por Borges – o drama de quem
gostaria de ler e não pode (porque não sabe) é muito maior do que
de quem não quer se dedicar à leitura, pelo menos num determinado
momento. Isso pode ocorrer ou porque a pessoa tem outras coisas a
fazer, que julga mais importantes naquele instante, ou por não ter
cultivado, como deveria, esse hábito e por isso não sente prazer de
ler. Para o analfabeto, porém, esses mananciais de informação e
conhecimento constituem-se num enorme mistério.
Ele
tem intuição de que ali poderia encontrar um mundo de sabedoria e
beleza. Mas não tem a “chave” que lhe permita abrir essa porta
encantada e acessar esse universo que lhe é interdito. É como se
quisesse entrar num lugar particular, mas fosse impedido por causa de
uma injusta proibição.
Para
ele, o livro até pode ser um objeto estético (e em muitos casos,
é), mas não pelo seu conteúdo. Conheço muitos analfabetos que têm
bibliotecas até de razoável porte. Estas lhes servem, todavia,
apenas como meros elementos de decoração. Possuem volumes de
encadernações caprichadas, luxuosas e variadas, cujas cores e
formatos das lombadas combinam com absoluto bom gosto e arte. Mas só.
As
estantes, geralmente de madeiras nobres e com designs modernos e
arrojados, dão, sem dúvida, ares de sapiência e de sóbria
austeridade aos ambientes nobres das suas casas. Contudo, essas
pessoas estão privadas do essencial. Para elas, não adianta abrir
nenhum desses livros, pois o interior de todos eles lhes parecerá
absolutamente igual. Estão privadas, portanto, de concretizar a
possibilidade estética que, como Borges enfatizou, “muda a cada
instante”.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A leitura nos muda a cada instante, assim como a nossa compreensão de uma obra muda a cada leitura.
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