Tentativa
de explicação da violência: René Girard
* Por
Leonardo Boff
Vivemos
no nível nacional e mundial situações de violência que desafiam
nosso entendimento. Não apenas de seres humanos contra outros seres
humanos, especialmente no Norte da África, no Sudão, no Oriente
Médio e entre nós mas também contra a natureza e a Mãe Terra. Não
sem razão que está se impondo a ideia de que inauguramos uma nova
era geológica, o antropoceno segundo o qual o grande meteoro rasante
ameaçador da vida no planeta é o próprio ser humano. Ele se fez o
Satã da Terra quando foi chamado a ser o anjo bom e cuidador do
Jardim do Éden.
A
existência da violência, não raro sob forma de aterradora
crueldade, representa um desafio para o entendimento. Filósofos,
cientistas e sábios não encontraram até hoje uma resposta
convincente.
Quero
apresentar, sumariamente, a proposta de notável pensador francês
que viveu muitos anos nos EUA e que faleceu em 2015: René Girard
(1923-2015). Apreciava meus textos e a Teologia da Libertação em
geral a ponto de ele mesmo ter organizado em Piracicaba-SP um
encontro (25-29 de junho de 1990) com vários teólogos e teólogas,
pois via nos propósitos deste tipo de teologia a possibilidade da
superação da lógica da violência.
De
sua vasta obra destaco duas principais: “O sagrado e a violência”
(Rio 1990) e “Coisas escondidas desde o princípio do mundo”(Rio
2005). Qual é a singularidade de Girard? Ele parte da tradição
filosófico-psicanalítica que afirma ser o desejo uma das forças
estruturantes do ser humano. Somos seres de desejo. Este não conhece
limites e deseja a totalidade dos objetos. Por ser o desejo
indeterminado, o ser humano não sabe como desejar. Aprende a
desejar, imitando o desejo dos outros (“desejo mimético” na
linguagem de Girard).
Isso
se vê claro na criança. Não obstante os muitos brinquedos que
possui, o que mais ela quer, é o brinquedo da outra criança. E aí
surge a rivalidade entre elas. Uma quer o brinquedo só para si,
excluindo a outra. Se outras crianças entrarem nesse mimetismo,
origina-se um conflito de todos contra todos.
Esse
mecanismo, afirma Girard, é paradigmático para toda a sociedade.
Supera-se a situação de rivalidade-exclusão, quando todos se unem
contra um, fazendo-o bode expiatório. Ele é feito culpado de querer
só para si o objeto. Ao se unirem contra ele, esquecem a violência
entre eles e convivem com um mínimo de paz.
Com
efeito, as sociedades vivem criando bodes expiatórios. Culpados são
sempre os outros: o Estado, o PT, os políticos, a polícia, os
corruptos, os pobres e por ai vai. Importa não esquecer que o bode
expiatório apenas oculta a violência social, pois todos continuam
rivalizando entre si. Por isso, a sociedade goza de um equilíbrio
frágil. De tempos em tempos, com ou sem bode expiatório explícito,
a violência se manifesta especialmente naqueles que se sentem
prejudicados e buscam compensações.
Bem
o expressou Rubem Fonseca em seu livro “O Cobrador”. Um jovem de
classe média empobrecida, por força das circunstâncias, pratica
atos ilícitos. Sente-se roubado pela sociedade dominante e confessa:
“Estão me devendo colégio…sanduíche de mortadela no botequim,
sorvete, bola de futebol…estão me devendo uma garota de vinte
anos, cheia de dentes e perfume. Sempre tive uma missão e não
sabia. Agora sei… sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo
seria melhor e mais justo”.
Aqui
busca-se uma solução individual para um problema social. Na medida
em que permanece individual não causa grande problema. Pelo
contrário, os causadores principais da violência estrutural são
as classes dominantes que acumulam para si à custa do empobrecimento
dos outros. Quanto mais duramente se aplicam as leis contra os
empobrecidos mais seguras se sentem. Destarte, conseguem ocultar o
fato de serem elas as principais causadoras de uma situação
permanente de violência que o empobrecimento implica.
Mais
ainda, vivemos num tipo de sociedade cujo eixo estruturador é a
magnificação do consumo individualista. A publicidade enfatiza que
alguém é mais alguém quando consome um produto exclusivo que os
outros não têm. Suscita-se um desejo mimético de se apossar do bem
do outro. Esta lógica perpetua a violência.
Mas
o desejo não é só concorrencial, diz Girard. Ele pode ser
cooperativo. Todos se unem para compartilhar do mesmo objeto. De
concorrentes se fazem aliados. Tal propósito gera uma sociedade mais
cooperativa que competitiva e uma democracia participativa. Aqui
Girard via o sentido político da Teologia da Libertação porque
propõe uma educação que não imita o opressor, mas se faz livre e
ensina a não criar bodes expiatórios mas a assumir a tarefa de
construir uma sociedade mais igualitária e inclusiva. Então
sim haverá mais paz que violência.
*
Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o
ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a
vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes
(2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com
Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on
transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz”
(Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em
Cancun, no México.
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