Crisálida
número dois
* Por
Mara Narciso
Não
sei de onde me veio aquele furor faminto repentino. Casada há dois
anos e decidida a ter um filho, estava de fato grávida, e passado o
enjoo inicial, surge uma gana descontrolada por comida, de tal ordem,
que me fez engordar 30 quilos em seis meses. Após uma cesariana,
tornei-me, enfim, mãe. Estava realizada, apesar da ameaça que o
desconhecido opera.
Feliz
no meu papel, após quatro meses voltei ao trabalho de professora.
Tinha quem cuidasse do meu filho, assim, minha vida continuava
organizada. Numa peleja gloriosa, voltei aos meu 65 quilos anteriores
a gravidez, mas engravidei de novo, desta vez por descuido. E lá me
vêm novamente os trinta quilos, que, depois do segundo parto, não
consegui eliminar. Durante a amamentação ganhei muito peso. A
chegada aos cem quilos foi fatal, porque daí para frente o limite
inexiste. Fui a vários endocrinologistas, iniciei mudanças no
estilo de vida, abandonando o sedentarismo, pizzas, sanduíches,
chocolate e refrigerante, mas minha aderência logo se arrefecia, e
eu via o marcador da balança subir.
Perdia
cinco quilos e ganhava dez, sofria para vencer a vontade de comer,
para depois desistir, pensando: amanhã recomeço. Vendo que não
conseguia fazer dar certo, sentia-me esgotada, sendo confrontada com
a culpa. Estava imensa diante do espelho, nada me servia. Não me
reconhecia nas fotos, o mundo ficou pequeno para mim quando
ultrapassei os 120 quilos. Era um gigante, sem espaço nem
mobilidade.
A
vida boa e o emprego não me saciavam, então precisava comer. Eu,
uma mulher plena, com vida afetiva e profissional bem estabelecida,
marido compreensivo, filhos saudáveis, mãe colaborativa, vi mudar,
com a obesidade, o jeito de as pessoas me olharem. Até numa reunião
de trabalho, desprezavam minha opinião, não me davam tempo para me
manifestar, em represália ao enorme espaço físico que eu ocupava.
Reparei
nas amigas, que após o segundo parto me estimulavam, olharem-me com
desdém, como se eu fosse preguiçosa, não tivesse amor próprio e
nem coragem para tirar o que me deixava infeliz. Usei remédios
prescritos pelo médico e clandestinos em altas doses e longos
prazos. Cheguei a perder 25 quilos, mas inexoravelmente ultrapassava
o peso anterior. Era algo incontrolável, que me dominava.
Procurei
fazer terapia comportamental com psicóloga, por diversas vezes fiz
matrícula na academia, mas o exibicionismo e o desfile de belos
corpos por lá, não me permitiam frequentar o lugar. Numa caminhada,
passar na mesma porta duas vezes era incômodo, pois notava que as
pessoas me olhavam e pensavam: não vai adiantar. Exausta, sentindo o
permanente massacre da obesidade, que tirava meu fôlego e a
liberdade de ir e vir cheguei a pensar em morrer, mas, acabei por me
decidir, após inúmeras pesquisas, ser submetida à cirurgia
bariátrica.
Foi
um ano de preparação, participando de grupos nas redes sociais,
conversando com gente que fez e deu certo, além dos desastres, das
ineficácias e até das mortes. Como atingi IMC de 49, 6 - 135 quilos
em 1m e 65 cm -, meu plano de saúde cobriria meu tratamento. Passei
por vários profissionais, fiz inúmeros exames e após ver o lado
físico e emocional, entrei no bloco cirúrgico. Seria uma cirurgia
pela via laparoscópica.
Quando
acordei, estava tudo terminado. Foi normal, e não senti grandes
dores. Daí, passei pelo périplo da dieta líquida, depois pastosa e
por fim sólida, ao longo de três meses. A perda de peso no 1º mês
foi monumental, quase um quilo por dia. Com exercícios, ao fim de um
ano estava com 85 quilos. Programei e passei pela reconstrução do
meu corpo. Fiz a retirada de pele no abdômen e tive refeitas as
mamas. Renasci para o mundo, e para mim mesma. Saí do casulo que me
esmagava.
Com
45 anos, eu, que não era aceita, agora era convidada e elogiada.
Virei referência. Não que eu queira ditar normas, - já
ditando-, ou achar que o obeso não pode ser feliz, mas eu, que
passei pelo “gordo”, “magro”, quase como o “morto, vivo”,
das brincadeiras infantis, proclamo a todos que ter a chance de
renascer em outro corpo, que ainda sinto estranho, parecendo não ser
meu e nem mesmo ser eu, é uma estranheza agradável. Não teria
outro jeito de emagrecer sem operar o estômago? Não, não tinha.
Meu marido gostou de tudo, especialmente do amor que sinto por mim e
por ele, concretamente. Com essas novas asas, agora eu quero voar
muito!
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
A perda de peso parece mesmo diretamente proporcional ao ganho de amor próprio. E é muito bom que seja assim, para a mente e para o corpo. Abraços, Mara.
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