Para o Dia das Mães
* Por Urariano Mota
No Brasil, o Dia das Mães vem no segundo domingo de maio.
Penso
que é próprio divulgar um trecho do meu romance “O filho renegado
de Deus”, publicado pela Bertrand Brasil em 2013. Estas são as
linhas:
O
filho renegado de Deus
Maria,
perdoa por agora eu não te chamar de mãe. Assim não te chamo já
porque não quero me curvar à degeneração do sentimento, ainda que
eu saiba ser filho do sentimento. Por enquanto és Maria, mais
mulher, santa que todo casto e pervertido cristão ama. Perdoa-me,
por ora. Assim te chamar Maria é um tributo a todas as mulheres como
tu, mulheres que deveriam ser abraçadas todas, em lugar de
destruídas, como as marias, mariazinhas sem nada, a não ser o sexo
e o nome comum.
Já
vês, com o mesmo discernimento fino dos teus últimos dias, em que
vias e mergulhavas num silêncio sozinha, porque não querias magoar
a quem amavas, já vês a contradição e o paradoxo do que tenho em
ti e como eu te guardo em mim. Pois como posso te remeter àquela que
para todo cristão está no céu e ao mesmo tempo te repor na terra,
no destino costumeiro de toda desgraçada? Não haveria nisso um
descaminho, um desvirtuamento, por querer dar a graça divina a teus
vestidos podres e sujos de doméstica? Ou seria, de modo mais
próprio, a subversão da subversão, porque traz de volta à terra o
que fora deslocado para o céu? Aqui não nego na terra a majestade
das tuas vestes que fediam, como depois o disseram.
Prefiro
este caminho, o de ver o céu, a humanidade magnífica no que tens de
despojada, nua, no teu doce leite de índia. Sim, Maria, agora sei e
repito e te repito e me reforço em todas as minhas carnes, que sou
filho do teu doce leite de índia. Digo isso e assim e desta maneira
paro, porque preciso respirar, inspirar, preciso de ar como naquele
instante em que me salvaste do soco de Dirico no fígado.
E
tão primário, elementar e fundamental é o leite que bebi em teus
seios, e dele venho bebendo pelo resto da vida, o que talvez não
adivinhavas, porque eu próprio até então não sabia desse
elementar elemento. Pois sou filho do teu leite, quase diria, sou
filho do teu enorme afeto, como outros são filhos do leite de Marias
brancas, negras, amarelas, ruivas, pardas, marias. Das Marias
desgraçadas, de modo mais preciso. Da precisa Maria Desgraçada que
um dia foste.
Marco
a estilete o quanto eu gostaria de sangrar o mundo que te sangrou. Tu
não possuías então consciência aparente da tua tragédia. Quem te
visse a sorrir, a gargalhar, a chorar de tanto rir, em um gozo de
choro e sorriso em um só movimento, em uma encarnação dos limites
da dor e do prazer no rosto, não poderia crer que à noite,
solitária, nas angustiosas noites sem sono, tu agarravas o teu filho
e choravas calada, sem sorrir. Lembro como uma névoa, passa como uma
distantíssima nuvem daquele século de 1958, quando te perguntei:
‘Mãe, o que foi?’. Nada, respondeste. E voltei: ‘Está com
saudade do meu pai?’. Então me falaste naquela cama larga, tão
grande para mim menino, a cama de que me recordaria meses depois da
notícia, para nunca mais dormir nela, então me respondeste com um
muxoxo, com aquela torcida nos lábios e um som que rompia à
semelhança de ventríloquo, porque o som vinha de dentro de ti e
parecia sair da boca torcida. ‘Que me importa?’, ou ‘Dele quero
distância’ quiseste dizer, quando na verdade fazias um desdém de
vingança, um vodu nos lábios.
Então
paraste de chorar, para não me afligir – tu me poupavas do teu
trágico, como se fosse possível. Mas continuaste por dentro, notei,
porque me puseste ao abrigo quente do teu corpo com ‘durma, durma’,
e no teu ventre inchado eu ouvia só agitação. E tão grave era a
hora que eu via o menino irmão. (Por que menino eu o julgava, não
sei até hoje, pois se houvesse ultrassonografia na época, não
seria para nós, que já possuíamos os ultrassentidos.) Então
eu via o menino a se mexer no teu ventre, tão pertinho de mim, e não
te perguntava quando ele ia nascer, nem muito menos se era verdade o
que dele falavam os vizinhos, quando gracejavam com aquela crueldade
de adultos, que o nenenzinho ia tomar meu lugar. ‘Vai ficar no
canto’, diziam-me. Como te perguntar, se tão abandonada a ti mesma
estavas? Só estavas nas tuas últimas horas, tão só a desejar ser
companhia do filho num paradoxo do sentimento, do desejo e da brutal
realidade, de querer o que em si mesmo era a negação do querer.
O
menino que viria então se agitava. (Maldição de miséria, mãe,
agora te digo mãe – maldição de miséria, mãe, maldição
porque mata as vozes que só querem realizar a sua natureza, falar,
falar. Agora entendo, mãe, o quanto odeio a miséria, no mesmo passo
em que amo os miseráveis. Eu, que sou filho do teu leite, eu que sou
filho de Filadelfo, sei agora que também sou filho da miséria, e
assim em terror quero extirpá-la de mim, com força, vigor,
violência: Maldita, o teu nome é crime.) Naquela hora sei que havia
movimentos no teu ventre, e depois vinha uma breve quietação, que
parecia opressa, porque respondia com pequenas pontadas laterais, à
semelhança de pequenos braços em convulsão. (Por Deus, eu não
queria ter esta memória. Por Deus!) Eu de nada sabia, apenas
arregalava os olhos no escuro, como se visse ou previsse fantasmas na
escuridão, e por isso eu mais me acercava de ti, e por isso mais te
compreendia a angustiosa agitação.
Ali,
à semelhança do irmão que viria se viesse, junto a ele e com os
seus semelhantes olhos que no escuro não entendiam o medo, com só
os sinais do medo, eu percebi, mãe, o teu soluço engolido, o tremor
do teu peito, no irreprimível arfar, abafado, dos teus seios. E, sem
entender as razões do medo, porque em ti eu estava abrigado, eu
descia a minha cabeça para te abraçar próximo a teu útero, para
nele realizar um novo paradoxo: o que seria abrigo era razão da
minha mais completa desventura: por ali viria, como todos pensavam, e
tu, não, por saber que por ali já não passava mais a tua
maternidade, numa vedação traiçoeira, infame, que dizia ‘mãe?!’,
pois na verdade em teu útero estava a vedação digna dos
miseráveis.
Naquelas
noites em que pensavas que eu dormia, enquanto eu te acompanhava na
insônia, tu, senhora do anúncio que mordias com os lábios
trêmulos, apenas por reflexo da tua silenciosa angústia eu me
avizinhava do abismo. Ali, próximo ao precipício, o espaço fundo
era antecedido pela colcha estendida na cama, agora noto, a mesma
colcha a notícia dias depois. Enquanto tu avançavas para a colcha
sobre o nada, tapete que não era mágico, só ilusão sobre um fundo
sem volta, ode o teu último sinal, o estrépito do teu grito – ou
não terias gritado um último, mãe? -, tu, ainda ali, me concedias
uma colcha antes, rósea, bordada, para as visitas, aquela colcha da
notícia que deveria ser feliz. (Até os pobres têm luxo, mãe,
venho notando adulto. Os pobres não se comprazem na miséria.) E nem
precisavas me deixar tanto, Maria, quando de ti o único e maior bem,
que a ninguém se dá, a vida, já me havias legado. Para que colcha
de luxo sob mim se em ti o fundamental se ia? Ó mãe, não há poema
nem verso nem clássico que te resuma. Não há poema, poesia ou arte
que cante o teu ser. Se eras a vida plena, pletórica, como te
apreender em linhas ou imagens? Pela impossibilidade de te pegar na
tua natureza, melhor te apanhar naquela foto desenhada, que se
dizia ampliada, retrato rústico na sala, que primeiro ficou ali,
depois transferiram para outro canto, até sumir das vistas, para
esconder um trauma ou falar para outros a tua insignificância.
Sorrio triste a pensar nos lugares para onde te jogaram, sorrio um
sorriso que jamais seria o teu, porque ias de um extremo a outro sem
passagem, ou eras desespero ou alegria de pular feito menina. Mas
sorrio triste agora, direi melhor, sorrio amargo ao usar, como se
fosse referente a ti, a palavra “insignificância”.
Sei
que dormi mais adiante, e desde então me desacostumei de
dormir como naquela noite, para não me acordar depois com um
sentimento de culpa. Dormir bem, dormir solto nunca mais, mãe, e eu
sei que não me culpas de te haver deixo sozinha na vigília,
semelhante a um condenado na véspera da execução. Sei e compreendo
a tua absoluta generosidade em aceitar que teu filho dormisse
enquanto contavas as horas, os minutos que faltavam antes das
contrações finais em teu peito e útero. Complacente e maior era o
teu coração. Um coração gordo que a tudo compreendia, abarcava.
Pois deves ter compreendido que antes de ser o teu filho eu era uma
criança.
E
as crianças, mãe, querem a felicidade, a alegria. Dormir a teu
lado, estando a tua pessoa insone e sozinha, só se explicaria pelo
egoísmo, pela alienação crua da infância. Eu queria que o mundo
continuasse um lugar de brincar, eu via o mundo como o universo em
que as flores e a luz da manhã se abriam sempre, sem perceber que ao
lado estava a mais infeliz das mulheres do beco. Não sei, eu
estava abrigado junto a ti, e as lágrimas quentes que desciam em mim
eram um conforto, o conforto de Maria, e por isso eu dormi, largo,
profundo, até a manhã líquida e branca do primeiro sol. E não dei
a devida importância quando, durante o dia, pelo murinho lá atrás
conversavas com uma vizinha, que te falava:
–
Dona
Maria, tire isso da cabeça. É impressão. Tudo vai dar certo,
mulher.
Existe
sempre uma tola esperança quando se diz ‘tudo vai dar certo’. E
tu vias, pior, sabias que nada ia dar certo, pois ainda que
fosses tão orgulhosa, tão digna da tua coragem, eu te vi chorar em
público, e bem ouvi, escondido, que contavas:
–
Eu
venho tendo um sonho que se repete. Eu sei que não escapo deste
menino.
O
enredo do sonho que contavas, eu perdi, a memória esqueceu, porque o
mais importante era o conteúdo e seu desfecho, que anunciavas como
um destino:
–
Sei
que vou morrer, dona Zizinha. De hoje eu não escapo.
Mulher,
você só tem 30 anos, a vizinha te falava, isto é, te consolava,
porque os sonhos ali sempre possuíam o dom da previsão, os sonhos
eram uma pitonisa mais que anúncio, porque determinavam o destino, e
por isso repetias entre soluços ‘de hoje não escapo’. Mas como,
perguntava a vizinha, como hoje?
–
A
senhora está já com as dores?
–
Não,
mas vou sentir. Eu sei.
E
para não dar espetáculo de circo para a tua dor mais íntima, para
negar a alguns o gozo de ver uma gorda Maria com cara de palhaço
borrada, e tão bela eras, Maria, como te achavas palhaço?, lembro
que vieste para a cozinha, e eu fingi que estava brincando, a puxar
um carrinho imaginário. Então eu saí a puxar meu carrinho, zuuum,
dessa vez não rumo ao oitão onde se desenhava o sexo de dona
Geraldina, pois naquela hora não estava nem residia qualquer
bem-aventurança, eu me afastei para em outro ponto te observar. Pois
dizias coisas tão séria, que desconfiei de algo muito grave.
Acho que notaste minha espionagem, de cócoras a te perguntar, ‘mãe,
é sério?’, porque me descobriste e vi o rosto mais belo de mulher
em toda a minha vida. Com o rosto ainda molhado, os olhos vermelhos,
tu me sorriste – ah, Maria, como a coragem é bela – e disseste:
–
Você
vai ganhar um irmãozinho.
*
Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no
Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de
Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom
Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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