O
desejo de liberdade
* Por
Carlos Castello Branco
Não
há qualquer indício de que o Governo pretenda transformar o impulso
de fraternidade e congraçamento, simbolizado na atitude permanente
do grande morto deste agosto de 1976, em algo capaz de alterar a
substância desse regime intolerante por índole sob o qual vivemos.
Que o povo está do lado da conciliação e da paz e que reivindica o
seu lugar ao sol ficou evidente na extraordinária concentração
cívica, a qual, segundo a feliz expressão do Senador Paulo
Brossard, devendo ser um lamento, se converteu em hino. As
restrições, símbolo do regime, "parece que se condensavam no
esquife de um perseguido e provocaram a explosão dos mais nobres
sentimentos populares". O sentimento, todavia, não era de
revolta, mas de pungente apelo à compreensão da grandeza da causa a
que se dedicara sem ódio e sem ressentimento o fundador de Brasília.
Havia na manifestação popular como que a transfusão da
generosidade do proscrito e o apelo para que todos se irmanassem em
torno da devolução da liberdade à Pátria. A uma amiga, com quem
esteve em Brasília na véspera da sua última viagem, Juscelino
Kubitschek, depois de lançar um olhar sobre a cidade, que sentia
distanciar-se das suas origens, perguntou de repente: "Será que
morrerei sem ver de novo a minha terra livre?"
O
desejo da liberdade é a grande mensagem da manifestação de
Brasília. Coincide ele, em essência, como o projeto político do
Presidente Geisel, conduzido por entre as asperezas de um sistema
ainda indomável no seu ímpeto reacionário. Os esforços do
Presidente, que já nos devolveu parcelas importantes da liberdade de
debate e de manifestação do pensamento, embora ainda a título
precário, são testemunhados pela Nação mas operam por entre
contradições, indicativas de que continua a viver o Governo entre
pressões e contrapressões que o constrangem a uma pausada marcha,
do que pretende didática, no caminho do que passou a chamar de
aperfeiçoamento democrático, desde que ao sistema repugna ainda a
palavra "democratização", mais ajustada a um regime de
baixo grau de institucionalização e de menor grau de participação.
A
longa demora para que o Governo se decidisse à homenagem elementar
do luto oficial pela morte de um ex-Presidente da República revela
que o General Ernesto Geisel se depara com dificuldades muito
específicas para conjugar sua ação de Presidente com sua ação de
chefe do processo revolucionário. É claro, como observou o Sr.
Humberto Barreto, numa óbvia tradução do alívio presidencial pela
decisão que pôde afinal ser tomada, que se tratava de uma decisão
que merece elogios. Tanto mais elogiável quanto o tempo necessário
a tomá-la revelou obstinação e decisão do Chefe do Governo na
confrontação com os obstáculos que teve de examinar e estudar.
Fato que por si só põe a nu a inviabilidade do congraçamento entre
povo e Governo, propiciada pelos sentimentos que brotaram na Capital
na última segunda-feira. Passado o espanto e vencida a cautela dos
primeiros dias, voltaremos à radicalização, preconizada dentro do
sistema como um duplo e dúbio dever de enfrentar a eleição e de
confrontar os adversários do processo revolucionário.
No
entanto, não se pode deixar de abrir lugar, nesta ordem de
considerações, à ordem do dia do Ministro Sílvio Frota, que
conclamou a juventude a repudiar "o preconceito, a intolerância,
a violência, as ideologias fanatizadoras e as doutrinas anticristãs,
para exaltar os valores da verdade, da justiça e da liberdade, para
praticar, como nenhuma outra gente, a ampla e fraterna convivência
humana, seguindo os ditames da consciência nacional". Magnífica
e oportuna a inspiração do Ministro do Exército, como que a
identificar, no episódio que precedeu de dois dias a comemoração
do Dia do Soldado, aqueles ditames da consciência tão claramente
demonstrados pelo povo no enterro de um dos seus heróis. Um herói
pacífico, tolerante, fraterno, entre cujos erros jamais se contou,
no Governo, o apelo à violência e, dentro ou fora do Governo, a
demonstração da intolerância e do preconceito ou a adesão a
qualquer ideologia fanatizadora.
Conjugam-se
assim elementos positivos manifestação popular, definição
política do Presidente e tomada de consciência do Chefe do Exército
a confluírem para um objetivo, que no entanto ainda é uma meta
longínqua no quadro das realidades nacionais. Ao General Geisel
cumpre lembrar o exemplo de decisão e audácia do falecido
Presidente Juscelino Kubitschek, que resolveu construir Brasília e a
construiu em três anos, enfrentando ceticismo, oposição, quase
revolta. Do trabalho à malícia, a tudo recorreu para vencer
obstáculos e fazer o que lhe parecia ser obra exigida pela Nação e
a ser cumprida por alguém que se dispusesse a agir na dimensão do
estadista.
(Jornal
do Brasil, 25 de agosto de 1976.)
*
Jornalista, contista e romancista, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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