Lembrando
da estrada de ferro
* Por
Urda Alice Klueger
(Escrita
em 1995 – com novas informações sobre o que aconteceu a seguir
incluídas no ano de 2017)
Como
num bom filme de Western, tínhamos uma estrada-de-ferro
aqui no Vale do Itajaí, desde o começo do século até 1966 ou
1967, não tenho certeza. Ela ligava Blumenau até quase os confins
da região colonizada um século antes; ligava Blumenau ao porto de
Itajaí. Era uma estrada importante: a vida da região corria por
ela. Para tudo nos servia, e, além do seu papel econômico, era uma
fonte de alegrias, era a promessa das coisas boas.
Vou
contar um pouquinho da minha experiência com ela. Na minha infância,
a estrada-de-ferro significava encantadores finais de semana na casa
da minha avó, em Lontras. A gente tomava o trem no centro de
Blumenau, e o meu delírio nessas viagens era comer cocada, que meu
pai sempre acabava comprando do vendedor do trem, iguaria rara, a
mais deliciosa que eu conhecia. Podia acontecer, inclusive, que numa
viagem de trem a gente experimentasse até um sonho recheado de musse
com guaraná (a Coca-Cola ainda não chegara por aqui), e aquilo dava
o colorido maior das minhas viagens de infância. Eram muitas horas
no trem, creio que umas sete ou oito, atravessando túneis cheios de
fagulhas e vendo paisagens ousadas e maravilhosas, até chegarmos a
Lontras e à casa do meu avô.
Estar
lá era uma festa! Havia sempre grandes bacias de vidro cheias de
sobremesas de ameixa ou de peras, mas, acima de tudo, havia o
convívio e as brincadeiras com meus primos Lori, Ralph, Rudy e Fred.
Brincávamos como loucos o dia inteiro, e voltávamos no domingo à
tarde, sempre carregando sacos cheios de tangerinas, peras ou
Pflaumenn, ou as deliciosas limas, tão fora de moda atualmente,
quase sumidas do mercado. Dormíamos de cansaço nos bancos duros do
trem, e, chegando em Blumenau, pegávamos um carro de mola na estação
(antepassado do táxi, puxado a cavalo), pois eram muitas as frutas e
as crianças cansadas a carregar.
Creio
que a viagem mais chocante que fiz na antiga estrada-de-ferro foi
quando tinha 14 anos, portanto, em 1966, às vésperas do trem ser
desativado. Fui com meu pai, visitar minha avó (meu avô já tinha
morrido fazia tempo). Eu era uma autêntica adolescente/aborrecente,
e lembro-me muito bem como me vesti para a viagem de trem: moderna
saia plissada de nycron branco, moderna blusa de
ráfia vermelha brilhante, moderníssima touca de ráfia branca que
herdara da minha irmã, e que, lembrando agora, tenho a certeza de
que parecia um porco-espinho. Moderníssima, entrei com meu pai no
velho trem, ansiando, como toda adolescente que se preza, pelas
grandes aventuras que viriam. E a aventura estava lá, no mesmo
vagão, na forma de um rapaz lindíssimo, claro, bem vestido, que, na
mesma hora, me concedeu a honra de me olhar com admiração. Era um
cara já bem velho (calculo que tivesse seus 20, 22 anos), e foi uma
loucura a paquera que rolou, a gente a se olhar a viagem inteira
quando meu pai estava distraído, eu me sentindo a própria Mata-Hari
com aquela touca de ráfia que mais parecia um porco-espinho. Naquela
minha derradeira viagem de trem no Vale do Itajaí, nada vi da
paisagem: todos os momentos foram dedicados ao “gato” que me
paquerava também. Ele saltou antes de mim, creio que na estação de
Subida ou ali por perto, e eu segui com meu pai para o final de
semana na casa da minha avó.
Houve
bacias de vidro cheias de sobremesa de ameixa e galinha ensopada com
bolinhos de arroz, como sempre, na casa dela, e meus primos já
estavam muito grandes para que quiséssemos brincar como antes.
Gastei o tempo lendo velhíssimas Seleções do Readers Digest, e
chegou a hora de voltar.
Quem
entrou no trem, provavelmente de novo na estação de Subida? O
“gato”, nem mais, nem menos. Desfalescente de emoção, a
adolescente/aborrecente não queria acreditar em tamanha sorte. E a
paquera rolou de novo.
No
meio do caminho, aproveitando que meu pai fora tomar água (Ai! Que
luxo eram aqueles bebedouros do trem, com suas piazinhas brancas!), o
moço gato, gatíssimo, levantou-se e veio até o meu lugar. Sem
fôlego para responder, peguei na mão o cartão de visitas que ele
me dava (que luxo!), e o ouvi dizer:
-
Escreva para mim neste endereço! – (telefone, naquela época, nem
pensar.)
Escondi
o cartão no sutiã antes que meu pai voltasse, e passei dias,
semanas, com ele queimando na mão. O nome do moço era Otávio
Hiandts, e ele era de Itajaí. Escrever-lhe era a minha maior
vontade, mas se ele respondesse? Como justificar em casa estar
recebendo carta de um desconhecido? Foram dias de dura luta interior,
até pegar minha caneta Parker e um papel bem bonito, e lhe mandar
uma carta:
“Não
quero que me escrevas, porque meus pais podem não gostar.”- mais
ou menos assim, coisa bem boba, dessas que a gente faz na
adolescência.
Num
mais soube nadinha do príncipe Otávio Hiandts, de Itajaí, que,
provavelmente, como eu, tinha uma avó com quem passar o final de
semana pelas beiradas da linha do trem. Hoje ele dever ser
respeitável senhor, avô de netos, talvez barrigudo, talvez careca,
e as pessoas de certo nem se lembram o quanto já foi bonito. De
repente, com esta crônica, até alguém me dê notícias dele.
Mas
que pena que o trem acabou!
ADENDO:
Depois
da publicação desta crônica no Jornal “A Notícia”, de
Joinville, que circulava por quase todo o Vale do Itajaí, eu fiquei
esperando alguma notícia de Otávio Handts. Em seguida, ela saiu
numa revista e depois no meu livro “No tempo da bolacha Maria”,
livro que até hoje circula amplamente, e nunca apareceu de novo
aquele rapaz. Dezenas, com certeza mais de centena de alunos, nas
mais diversas escolas, assim como muitos leitores, perguntaram-me por
ele – e eu não tinha resposta.
Quando
veio a Internet e toda a gente passou a ter seu e-mail e poder
acessar sítios de busca que eram os antepassados do Google, como o
Cadê e o Alta Vista, por exemplo, um dia cheguei em casa, e ao abrir
os e-mails, vi que alguém me escrevera com o sobrenome Hiandst.
Tratava-se do filho daquele moço bonito que, penso, num momento de
diletantismo, colocou o nome do seu pai nos sítios de busca – e
ele apareceu na minha crônica! Esse gentil moço fez contato comigo
e hoje somos amigos no facebook. Contou-me que, infelizmente, seu pai
falecera prematuramente. Naquela altura, a única referência que ele
encontrou sobre seu pai na Internet... foi a minha crônica! Fiquei
muitíssimo emocionada.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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