Laboratório
* Por
Laís de Castro
Esse
laboratório nunca me deu uma notícia ruim. Sentada aqui, fico
pensando no tanto de gente que entrou aqui sã e saiu com câncer de
esôfago. Uma merda, câncer de esôfago. Pensa bem: o cara chega ao
laboratório com a esperança lá em cima, bem acima do que ela
deveria mesmo ser e sai de lá morto. Ou meio morto, já que lhe
sobram alguns meses de vida. Esse assunto é pesadão, sabia que a
barra ia pesar se eu começasse a falar de laboratório. Assim,
assado.
Estou
cheia de vir aqui. Vim tanto, que fiquei amiga das recepcionistas,
uma até tirou xerox do Boletim de Ocorrência de uma batida que uma
besta deu no meu carro e que eu precisava levar pra oficina
desamassar, estas coisas. Falei besta, mas não é um carro tipo
besta. É uma mulher tipo besta, porque veio com um carrão importado
pra cima de mim, que merda, mas a moça do laboratório foi
superbacana porque tirou a xerox que eu precisava. Assim, fiz 719
exames de sangue, 127 tomografias e mais 38 raios-X e mais o caramba,
para ver o que é que me dava uma dor de cabeça insistente,
massacrante, destrutível.
Quando
chegava dona dor de cabeça, não tinha mais pra ninguém. Era ela
chegando, tomando conta de tudo e eu num mau-humor mesclado de
tristeza, de profunda tristeza, começando todos os dias com aquelas
teorias de que sem saúde nada vale, nada importa e é verdade mesmo,
embora seja um discurso sem-vergonha, meio dado ao careta, eu comecei
a fazer.
Uma
merda, câncer de esôfago.
A
dor de cabeça chega todos os dias à uma da tarde em ponto, momento
em que devo ingerir, instruída por minha própria receita, o
primeiro analgésico. O segundo é engolido, com um guaraná
antartica diet sem gelo, eu gosto de refrigerante sem gelo e ninguém
tem nada a ver com isso, exatamente às 14h, quando meus olhos
começam a ficar sensíveis à luz e a fechar, tamanho o ataque desta
barbárie. O terceiro tiro contra a dor, agora bem mais forte que os
dois primeiros, é detonado em torno das 16h e começa, então, a
surgir algum efeito concreto. Dor é concreto ou abstrato? Sinta uma,
regularmente, todos os dias, crônica, selvagem, senhora do seu
destino e depois me responda. Dor é um dos piores substantivos
concretos que o ser humano já classificou como abstrato.
Câncer
de esôfago é bem pior. É uma merda.
A
gente pára na porta do laboratório e o cara fala: veio fazer ou
buscar? Fazer o quê? Buscar o quê? Ele já sabe, óbvio, que a
palavra exame não precisa ser recitada. Veio fazer e-xa-me ou buscar
e-xa-me? Pra que ficar gastando seu precioso tempo e seu aurífero
latim com excessos? Nada disso, o cara tem mais o que fazer,
estacionar na rua do lado mais de trezentos carros pela manhã e
depois ficar lá mastigando um palito entre as dentes a tarde inteira
que ninguém faz exame à tarde, porque todos têm mais o que
realizar, vim buscar,
pode deixar o carro aí mesmo. Se eu fosse fazer
ele levaria para a rua do lado.
Pode,
por favor, tirar a roupa e se deitar aí nessa maca. Pode fazer o
favor de tirar a roupa da cintura para cima e deitar-se com a cabeça
entre aqueles dois ferros da máquina, estou com medo que essa
máquina me transforme em cinzas tal o tamanho e a parafernália.
Sabe aquelas máquinas de seriados antigos que simplesmente nos
desmanchavam e a gente desaparecia? Estou com medo. Por favor,
estique o braço esquerdo, e apóie aqui, não me lembro o nome do
troço que a gente apóia o braço pra fazer exame de sangue. E haja
radioatividade sobre o bom o e velho corpo, e haja um montão de gel,
para passar aquela incrível maquininha que vê tudo o que a gente
tem por dentro, na ultrassonografia abdominal, genital, pescoçal,
tudo. O cara pega uma espécie de scanner manual e vai passando e
repetindo, aqui é o baço, aqui é a vesícula, está lindo o seu
útero, o tal do endométrio está fininho, para sua idade (não fala
provecta, resiste à vontade) vai bem, obrigado. Obrigada digo eu,
que cheguei aqui morrendo de medo e agora tenho a fantástica notícia
de que meu endométrio é fininho. Pela cara dele essa é uma boa
notícia, ninguém me falaria assim, na lata, sobre um câncer de
esôfago.
A
enfermeira sanguinária amarra uma borracha apertada no meu
antebraço, desgraçada, vai amarrar na sua mãe, nem liga, fica me
apertando com a ponta do indicador, fecha a mão, dona, que é para a
veia vir melhor, espeta aquela agulha descartável e vai tirando um
montão de ampolas, à vácuo, chiquérrima, chega, está pensando
que eu sou banco de sangue, droga, insensível. Não sou. A outra vem
e acerta minha cabeça na máquina com a delicadeza de um dog alemão,
calma, insignificância gorda, cuidado. A médica me mede inteira
através de um vidro, como se já olhasse para o além, mas eu sou
mais eu, me levanto e vou embora, fingindo uma coragem inatingível,
de verdade apavorada, depois de obedecer a todos os trâmites do
exame é claro. Depois daquela história do abdome, fico dezoito
minutos tirando gel da barriga e da alma, me deixam ali toda
melecada, um gel gelado, cheirando a álcool.
Esse
laboratório é o máximo. Tem um chocolate quentinho e maravilhoso
que dá a sensação de colo materno, depois que a gente faz todos os
exames. Tem um café com leite que parece a mão firme paterna para
atravessar a rua. O melhor dele é esse chocolate quente que tem na
saída do exame de sangue, tenho que ir de madrugada em jejum, é
ruim. Mas o pior desse laboratório ainda não vi. E nem vou ver.
Depois
de velha a gente sente medo, mas o café, aquecendo o estômago,
acaba com todo e qualquer pavor que a tecnologia cheia de lasers
azuis e vermelhos possa criar. Por enquanto, senhoras e senhores,
estou desfrutando o café e o chocolate. Não tenho câncer de
esôfago, aquele que é uma merda. Esse laboratório não faria a
maldade de me dar uma notícia ruim.
*
Jornalista, com 3 prêmios Abril. Trabalhou, ainda, na Editora
Três (sob Luís Carta), na Editora Símbolo onde foi diretora da
Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora
do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora
Siciliano.
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