Importante é sonhar
O
sonho é a grande matéria-prima do escritor. Não são fatos, como
alguns supõem, e muito menos ideias os componentes fundamentais das
suas obras. Os primeiros, nus e crus, sem qualquer acréscimo (se é
que isso seja possível) são da competência dos jornalistas. Os
segundos, são melhor desenvolvidos pelos filósofos. Mas os que
lidam com ficção... Estes têm que sonhar, e muito.
Claro
que, quando falo de sonhos, não me refiro àquele estado de
inconsciência que temos durante o sono, àquela espécie de
“descarga” do subconsciente (ou inconsciente, sei lá), que
independe da nossa vontade. Refiro-me à fantasia, à imaginação, à
criatividade desse artífice (ou artesão?) das palavras.
“O
escritor, então, não pode lidar com fatos?”, perguntaria alguém
que goste das coisas explicadas tim-tim por tim-tim e tenha a mania
de procurar pelo em ovo (há muitos, desse tipo, por aí). Claro que
pode! E não somente pode, como deve. Mas apenas para dar caráter de
verossimilhança aos seus sonhos.
Não
lhe compete reproduzir acontecimentos exatamente como ocorreram.
Afinal, não foi treinado, como o jornalista, para essa tarefa. É
por isso que suas histórias são de ficção. Ou seja, nunca
aconteceram (embora pudessem ter acontecido). E quanto mais realista
for sua descrição, melhor. Só que, contos, novelas, romances e
peças teatrais são “mentiras” consentidas e bem contadas
(quando o são, óbvio). São frutos do “sonho”, da fantasia, da
criatividade dos seus autores e não das circunstâncias ou do acaso.
O
desafio do escritor é tornar sua narrativa a mais próxima possível
do real. Por isso, não raro, invade, também, e sem nenhum
escrúpulo, o campo que teoricamente seria restrito ao filósofo: o
das ideias. Mas não as detalha e nem busca explicar sua origem e
motivos.
E
o fantástico, o fantasioso, o aparentemente inverossímil, estão
interditos ao escritor? Claro que não! Esses fatores, aliás,
integram o que denomino de “sonhos”. São, portanto, a
matéria-prima por excelência de romancistas, contistas, novelistas
e autores teatrais. Até porque, nada tem maior aparência de irreal
do que a realidade, por paradoxal que isso possa parecer.
Acontecem
coisas no cotidiano, em nosso dia a dia, ao nosso redor e mundo
afora, que nem o mais imaginoso dos escritores, nem a mente mais
fértil e criativa, conseguiria imaginar. Basta acompanhar os
noticiários, cada vez mais fartos e detalhados, nesta era dita da
“comunicação total”.
Convenhamos
que, no que se refere a sonhos, quem sonha mais é o poeta. E
reveste-os de metáforas, de signos, de símbolos de toda a sorte,
compondo versos que pretende sejam imortais. Tanto que Fernando
Pessoa constatou, com muita perspicácia, que os bons poemas de amor
são exatamente os que se referem a amadas fictícias, meramente
idealizadas ou “conceituais”. Via de regra, quando tentamos fazer
poesia tendo por personagem a pessoa que de fato amamos, as palavras
soam ocas, vazias, superficiais, inverossímeis.
É
certo que poetas tidos e havidos como imortais (refiro-me, óbvio,
àquela “imortalidade” que caracteriza Homero, Virgílio,
Píndaro, Horácio e tantos outros. Ou seja, não a física, que é
impossível, mas a das obras), não raro calcaram suas obras em
fatos. Mas fantasiaram tanto esses acontecimentos, que chegamos a
duvidar que tenham, mesmo, ocorrido.
A
guerra de Troia, reportada por Homero na “Ilíada”, por exemplo,
de fato aconteceu. Arqueólogos desenterraram essa cidade e há
inúmeras provas da existência dela e de que foi destruída por um
incêndio. Hoje, as pessoas bem informadas não têm porque duvidar
dessa realidade.
Mas
os herois descritos pelo poeta não foram tão heroicos assim. E nem
manipulados, como meros marionetes, por deuses que eram, em seus
comportamentos e paixões, mais humanos do que os homens. Essa
imortal epopeia, portanto, é fruto do talento e, sobretudo, do sonho
de Homero. E como sonhou!
Para
resumir o que gastei tantas linhas para tentar explicar (e temo que
tenha sido obscuro em minhas explicações), recorro (como sempre
faço quando me vejo encalacrado para definir questões que envolvam
literatura), ao meu constante guru, Jorge Luiz Borges, que escreveu a
propósito: “Há escritores que pensam que, à força de variar os
adjetivos, de dizer as metáforas eternas de um modo novo, podem
obter algum escrito. Isto é falso. O importante é sonhar e ser
sincero com o sonho quando se escreve. Ou seja, somente contar
fábulas nas quais se acredita. Isto viria a ser a sinceridade
literária e o único dever do escritor: ser fiel aos seus sonhos,
não às meras e cambiantes circunstâncias”.
Mais
claro do que isso é impossível! É certo que quem pretenda se
aventurar neste complicado, pantanoso e não raro frustrante campo de
atividade, tem que contar com sólida cultura. Precisa, sobretudo,
saber manejar com perícia as ferramentas do seu ofício, ou seja, as
palavras. Deve ser bastante informado, ter disposição para o
trabalho, ser paciente e autodisciplinado e, sobretudo, observador.
Mas nada disso terá valor se não souber fantasiar, elucubrar, dar
asas à imaginação. Porquanto, para o escritor, o importante mesmo
é sonhar! O resto?
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Alguns não gostam da expressão "ourives da palavra" para explicar a finura que deveria ser a escolha delas ao escrever.
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