A
visita de Einstein ao Brasil
Para
usar de uma linguagem mais própria, devemos dizer: como a luz de uma
estrela que vem do passado, assim nos atinge a visita de Einstein ao
Rio de Janeiro. E com mais propriedade, acrescentar: se os 80
anos-luz que nos separam da estrela Algol fazem dela um lugar muito
estranho e diferente da nossa Terra, o mesmo não podemos dizer dos
87 anos que nos separam da boa sociedade do nosso Brasil, quando
Einstein nos visitou. Os tipos e personagens brasileiros continuam
vivos, com uma sobrevivência além da lógica, arqueológica,
deveríamos dizer.
Relatam
os cronistas que corria o ano de 1925. No princípio, Einstein não
viria ao Brasil. Dizem que ele nem mesmo sabia que lugar seria este.
“É um país tropical”, disseram-lhe. E como o sábio não
relacionasse tropical a qualquer coisa conhecida, informaram-no de
que era um lugar de selvas, de bananeiras, de clima quente, de
macacos e papagaios. Então Einstein se moveu, e, aproveitando sua
viagem à Argentina, alcançou o Brasil, porque seria, disseram-lhe,
como dobrar uma esquina. “De Buenos Aires ao Rio de Janeiro é como
ir de Berlim a Roma”. Entendo, respondeu-lhes Einstein, e mesmo sem
entender fez essas duas viagens.
Os
cronistas nada informam acerca de Einstein haver sido uma das
primeiras vítimas dos pacotes turísticos. Alguns, e aqui se irmanam
argentinos e brasileiros, afirmam que um turista como ele era um tipo
bem difícil de se enquadrar em um pacote. Como levar um homem
despenteado a um espetáculo de tango? perguntavam os argentinos. E
por essa impossibilidade queriam dizer que o físico não se
harmonizava, primeiro, com os cabelos gomados, e depois que o físico
não possuía físico para as evoluções de um tango. Em nível
menos óbvio, e esta era a verdadeira razão, o que não diziam é
que um tipo como Einstein não era um ser que gostasse do que todo
homem gosta: de vinho e de carnes nobres, da mesa à cama. Daí a
confusão, o caos, uma verdadeira indeterminação de Heisenberg em
suas mentes para regalar o cientista com um programa digno da sua
dimensão. Daí que, não lhe podendo fazer um roteiro de humanos,
fizeram-lhe um roteiro… científico. Palestras, conferências e
perguntas tontas. Anotaria Einstein, ao deixar Buenos Aires, que era
impossível ficar sério diante dos questionamentos que lhe eram
feitos em suas conferências. Ele mal imaginava as emoções que o
aguardavam a seguir. “Que venha o Brasil”, o cientista se disse.
Na
sua chegada ao porto do Rio de Janeiro só não lhe tocaram Cidade
Maravilhosa porque a banda no cais não poderia tocar o que ainda não
havia nascido. Mas as fotos mostram o cientista em um mar de
curiosos, que lhe acenavam e sorriam como se ele fosse um astro de
cinema. Se tivesse tempo para refletir, certamente diria o que certa
vez se disse Borges, ao ser cumprimentado por muitas pessoas nas ruas
de Buenos Aires: “eles acenam para um homem que pensam que sou eu”.
Mas não havia tempo. Dali, sempre cercado por uma comitiva dos mais
doutos cientistas, rumou para o Hotel Glória, onde pousou as
surradas malas. Não havia tempo. Havia que visitar a comunidade
israelita, ver a cidade, conhecer instituições respeitáveis,
visitar o Presidente da República, e dizer a que veio: três
conferências, a primeira no Clube de Engenharia, a segunda na Escola
Politécnica e a última na Academia Brasileira de Ciências. Com
direito a almoços e jantares nos intervalos, em locais diferentes,
sempre cercado da mais douta gente, e o mais que aparecesse, e tudo
no prazo de uma semana. Não havia tempo. Os organizadores da sua
agenda conseguiram o que parecia impossível em 1925: transformar a
bela cidade do Rio de Janeiro em uma anticidade.
E
cabe aqui, de passagem, uma visão dos responsáveis por seus dias no
Brasil, os chamados doutores que o cercavam. Não havia, entre eles,
um só físico ou um só matemático. Os doutores eram médicos,
advogados, políticos, militares, embaixadores, e alguns engenheiros.
Todos muito bem situados, ricos, ou a caminho de enriquecer, ou com
prestígio no Rio de Janeiro. Eram os doutores clássicos do Brasil:
os donos de uma posição social, e que por isso mereciam e merecem o
tratamento honroso. Com tal gente, o resultado foi o que se viu.
Na
primeira palestra, no Clube de Engenharia, o salão ficou completa e
absolutamente lotado. Políticos, graduados oficiais das três forças
armadas, altos funcionários, engenheiros, esposas e filhos e
filhinhos, todos muito unidos na mais absoluta ignorância do que
vinha a ser aquele indivíduo estranho e suas ainda mais estranhas
ideias. Com a vantagem, que os deixava ainda mais unidos, de não
entenderem uma só palavra da língua alemã. Ou até mesmo de outra
língua, diga-se, que não fosse o português falado na intimidade de
suas casas. O que importava era ver o homem famoso em ação. E Ele
era lento, logo se viu, porque em lugar de subir à mesa e de
imediato soltar um cocoricó, bater asas e se jogar pela janela,
pôs-se a pervagar com os olhos a assistência, “com os seus olhos
muito loucos”, como diriam depois. O que diabo eu vim fazer no Rio
de Janeiro, perguntava-se o bruxo, enquanto esperavam que nos seus
olhos entrasse alguma realidade sã. Como fazer, o que fazer, e como
fazer diante daquela assistência, perguntava-se. Então o nobre e
paciente cientista fez ver à mesa, em humilde francês, que não
poderia falar em alemão, porque essa língua muito iria dificultar o
entendimento de sua fala. Que fale em qualquer língua, pouco
importa, ninguém irá mesmo entendê-lo, vontade teve de lhe
responder o anfitrião. Mas preferiu dizer-lhe palavras mais gentis,
em francês, porque era um diplomata de carreira:
– O
senhor pode falar com a linguagem universal: fale pela língua da
matemática.
O
cientista sorriu, porque sabia que para a matemática ainda não se
inventaram os verbos necessários até na Teoria da Relatividade. E
passou a expor, em lento e paciente francês, como uma pessoa
envelheceria menos depressa em velocidades próximas a 300.000
quilômetros por segundo. Ao que comentou, quando lhe traduziram, a
velha senhora mãe do diplomata: “na teoria tudo é muito fácil”.
O certo é que o cientista conseguiu chegar ao fim, em meio ao calor,
entre o suor, o barulho e o choro de crianças, que mais sinceras se
manifestavam com gritos e esperneios. Ao terminar, o que todos de
imediato compreenderam, porque o cientista ficou de repente mudo e se
deixou ficar imóvel a um canto e sentado, toda a assistência se
levantou e prorrompeu em aplausos. Menos entusiasmado, Einstein
anotou em seu diário, mais tarde: “Às 4 horas, primeira
conferência no Clube de Engenharia numa sala superlotada, com ruído
da rua, as janelas abertas. Não tinha nenhuma acústica para que me
entendessem. Pouco científico”.
No
dia seguinte, para ser mais científico, foi à Academia Brasileira
de Ciências. Ali foi homenageado em uma sessão que se anunciou como
a maior já feita para o maior cientista de todos os tempos. Se
alguma dúvida ele possuía que estivesse no Brasil, ali os
acadêmicos trataram de tirá-la, porque o fizeram ouvir três
longos, vazios e verbosos discursos. Ouviu de certa forma, devemos
retificar, porque os discursos vinham em um francês que todos,
acadêmicos e cientistas, mal falavam. Falaram, falaram e falaram,
pela ordem: Juliano Moreira, Vice-Presidente, sobre a influência da
Teoria da Relatividade na Biologia, o que é lamentável, não a sua
fala, mas a falta de um registro preciso desse discurso, pois
teríamos um documento importante do nível mental dos nossos
acadêmicos; depois foi a vez de Francisco Lafayette, que foi do
movimento browniano, coisa que devia bem conhecer, até a síntese
desse movimento na Teoria da Relatividade! As atas não registram,
mas podemos imaginar o sorriso, de dor, de Einstein por essa extensão
e deferência (dizem que mais dói um elogio que não merecemos); e
por fim, usou da palavra o acadêmico Mário Ramos, que entre
circunlóquios e peroração instituiu o prêmio Albert Einstein a
ser entregue anualmente ao melhor trabalho científico. Então chegou
a vez do homenageado, a estrela maior que viera dos espaços de outra
galáxia. Pelo andar da carruagem, todos esperavam que o homenageado
fizesse um discurso mais alto e vibrante que os precedentes, porque
tais sessões sempre atingem um ápice, um paroxismo, e porque também
haviam sido formados, os acadêmicos, pela ciência do latino, a
grande e inexcedível eloquência de Cícero. Que por ser um sábio
Einstein babasse, cantasse uma ópera, ou mesmo caísse em um ataque
fulminante, seria normal, pois que era um gênio. O cientista, no
entanto, mais uma vez decepcionou. Em mau francês passou a falar
baixinho, à guisa de agradecimento, sobre a situação da natureza
da luz em 1925. Os acadêmicos se entreolhavam, frustrados, mas
sorriam a seus pares, todos muito sábios e senhores das equações
de Max Planck. Mais uma vez, a platéia composta de políticos,
jornalistas e doutores aplaudiu.
Eis
que chega então o melhor dia. Na terceira e última palestra, na
Escola Politécnica, não houve a invasão do grande público, das
senhoras mães com seus filhinhos, dos oficiais com galões e de
velhos generais nascidos no século dezenove. A julgar pelos jornais,
“o Professor Einstein pôde desenvolver a sua palestra sob um
ambiente tranquilo, e dessa maneira os cientistas brasileiros
acompanharam-no passo a passo na sua exposição”. Nem tanto, e por
favor acreditem, porque nada é mais rico que a própria realidade.
Um desses grandes nomes da ciência, um desses físicos era o jurista
Pontes de Miranda. Sim, um jurista. Pontes de Miranda vinha a ser o
autor de uma extensa obra que procurava construir a ciência do
direito conforme as idéias positivistas. O nome da obra era digno de
figurar em letras de ouro, nas bibliotecas dos doutos cientistas da
advocacia: Systema de Sciencia Positiva do Direito. Pois é esse
homem que a falar em alemão desafia Einstein, para maior fascínio
dos cientistas presentes:
– Data
venia, Herr Einstein, a Teoria da Relatividade não considerou as
implicações metafísicas das hipóteses que aventa. Das ciências
físicas até as ciências jurídicas a diferença, saiba, é de
grau. A Física mantém um pacto com o mundo da sociedade também, e
é pacto que tira e põe, mas não deixa intacto o que estava. A
questão é tanto mais delicada quanto a afirmação de não se poder
alegar o erro e a de se exigir a capacidade objetiva e o além da
capacidade objetiva, que leva a argumentos a favor de uma e de outra
opinião. Falta na Teoria da Relatividade o conhecimento, a
informação de que não é só o mundo em si, an sich, de que ela
trata. Há de se ver que nas suas consequências falta o
desdobramento de um mundo para nós, für uns…
A
platéia delirava diante de tal brilho. O cientista sorria e mantinha
silêncio. Quando acabou o discurso do jurista, no que parecia ser a
contestação à Teoria da Relatividade naquele tribunal, o físico
se levantou, e como a se despedir, entregou a um dos acadêmicos um
papel onde se lia:
“Die
Frage, die meinen Kopf entsprang, hat Brasilien sonniger Himmel
beantwortet” (“A questão, que minha mente formulou, foi
respondida pelo radiante céu do Brasil.”)
Era
uma referência ao eclipse do Sol, observado em Sobral, no nordeste
brasileiro, que em 1919 comprovara a previsão do cientista quanto à
deflexão da luz pelo campo gravitacional do Sol. Mas assim não
entendeu bem o ilustre jurista, que ao ler aquelas palavras
interpretou-as como uma resposta à sua intervenção. Pois não era
dia de sol e azul o céu do Rio de Janeiro na hora da palestra?
Da
sua viagem ao Brasil, sabe-se, por fim, que Einstein levou um
papagaio, recebido de presente de um homem do povo. Foi o maior
presente recebido em toda sua vida de um país tropical. Todos os
dias o papagaio lhe fazia lembrar, com graça e inteligência, o
saber daqueles doutores de posição social. Data venia, Herr
Einstein, data venia, Herr Einstein, repetia-lhe o papagaio. Os
amigos contavam que tais arremedos traziam sempre um pouco de luz às
manhãs frias e escuras do Doktor Einstein.
*
Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no
Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de
Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom
Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Se fosse hoje que alguém propusesse tais conferências e tais assistências, diriam tratar-se de um louco. Esta crônica já passou por aqui. Reli e gostei, mais uma vez.
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