Aécio
e a democracia de conveniência
* Por
Paulo Moreira Leite
Aécio
Neves não é -- com toda certeza -- o primeiro homem público
brasileiro a trocar os princípios democráticos pelas conveniências
políticas e projetos pessoais.
Mas
poucos agiram como ele. Após a derrota na eleição presidenciais de
2014, Aécio tornou-se o primeiro líder de uma conspiração para
sabotar a vontade das urnas, que culminou na deposição de Dilma
Rousseff em maio-agosto de 2016. Apanhado na rede das delações de
Joesley Batista, dois anos e cinco meses depois, este
comportamento dificulta seus esforços para convencer a Justiça e os
brasileiros -- de que é inocente até que se prove o contrário.
Sem
entrar no mérito das acusações, quero deixar claro que discordo do
"afastamento" do mandato de Aécio Neves por uma decisão
liminar de Edson Fachin, ministro do STF. Não vejo discussão real a
este respeito. O "afastamento" me parece um eufemismo
político -- sem amparo na Constituição -- para suspender os
direitos políticos de um senador eleito em 2010 com 7,5 milhões de
votos. Conforme o artigo 55 da carta de 1988, deputados e senadores
só podem ser cassados pelas suas próprias casas, "por maioria
absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido
político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla
defesa".
Também
não vejo uma justificativa plausível para a prisão preventiva da
irmã Andrea Neves. A exibição da imagem de Andrea na prisão, com
jaleco laranja de presidiária, é um espetáculo desnecessário e
degradante, incompatível com garantias individuais que asseguram a
toda pessoa -- mesmo acusada da maior barbaridade do Código Penal
-- o direito a um julgamento justo, com a presunção da
inocência até que se prove o contrário. Desde 1984 nossa
legislação protege toda pessoa presa contra "qualquer forma de
sensacionalismo".
Não
é fácil, contudo, defender os direitos e garantias individuais de
Aécio. Em sua atuação política recente, ele construiu uma
personalidade política que nada tem a ver com o avô Tancredo Neves,
respeitável liderança das lutas democráticas do país. A
referência é Carlos Lacerda, adversário de Tancredo em 1954 e
1964, principal arquiteto civil do golpe que derrubou Goulart. Como
Lacerda, Aécio negou para os outros, aqueles direitos -- universais
-- que mais tarde iria defender para si.
Depois
de empregar suas antigas ligações nos quartéis e a máquina do
governo da então Guanabara para sustentar o golpe militar
contra o governo constitucional de João Goulart, Lacerda
acabou cassado por dez anos. Numa tentativa de resistência, tentou
reunir adversários que havia combatido de modo feroz e injusto, como
Jango e Juscelino, através de um projeto de vida curta chamado de
Frente Ampla. A denúncia contra a ditadura podia ser -- e era --
correta. Mas a incoerência antidemocrática de Lacerda, o caráter
tardio e obviamente personalíssimo de sua reação, lhe tiravam
credibilidade.
Estava
identificado demais com a ditadura para ser levado a sério. Deixou
de agradar os generais, que passaram a temer sua liderança civil num
regime que se consolidava como regime de exceção e não queria
lideres sem farda. Já não tinha forças para mobilizar o
eleitorado original, em nome de uma democracia que havia abandonado.
Mesmo JK, que apoiou o golpe militar em sua fase inicial, não era
parte da conspiração. Sofreu o golpe e adaptou-se a ele.
Em
dezembro de 2015, ocorreu um episódio exemplar do comportamento de
Aécio. Foi quando a Segunda Turma do STF atendeu a um pedido de
Rodrigo Janot que, sem demonstrar muita convicção, solicitava a
prisão preventiva de seu colega Delcídio do Amaral. Os indícios
reunidos contra Delcídio, até ali, eram muito menos graves do que o
pedido de 2 milhões de reais de Aécio para Joesley Batista -- que
incluíram a logística para a entrega do dinheiro -- e maquinações
milionárias em torno da presidência da Vale. O fato é que a
postura de Aécio em relação ao colega, titular do mesmo mandato
seletivo, deixou a desejar. Mesmo dizendo lamentar a prisão, no
plano "pessoal", justificou a medida -- porta de entrada
para uma delação premiada contra Lula e o PT -- como "necessária,"
no plano "institucional".
Em
busca da opção mais conveniente para prejudicar seus adversários,
Aécio ainda partiu para cima de Dilma, estranhando que não fosse
chamada a explicar-se. "É incrível que a presidente da
República não se manifeste, como se não tivesse absolutamente nada
ver com isso, como se os delatores presos, réus confessos e já
condenados, não tivessem sido indicados pelo seu governo”, disse.
Em
abril de 2016, quando Sérgio Moro divulgou uma conversa telefônica
entre Dilma e Lula, Aécio fulminou a presidente e o candidato a
ministro da Casa Civil. Referindo-se a um diálogo que não poderia
ter sido gravado e muito menos divulgado, disse que a conversa
dos dois representava a "falência definitiva de um governo que
ultrapassou todos os limites éticos e morais para defender os
aliados".
Integrantes
do núcleo de Aécio no PSDB já agiam no mesmo tom nas primeiras
semanas depois da derrota de 2014. O voto de Gilmar Mendes no TSE,
aprovando as contas da campanha de Dilma "com ressalvas",
que abriram uma janela para investigações sem fim, é
incompreensível sem um ambiente de hostilidade que vinha da campanha
tucana. Em abril de 2015, integrantes da bancada que, sob a liderança
de Eduardo Cunha, emparedava a presidente Dilma Rousseff na Câmara
de Deputados, soltaram ratos no plenário de uma CPI do Congresso,
num esforço para tumultuar o depoimento do tesoureiro João Vaccari.
Na mesma sessão, após muitas proclamações e gestos teatrais, o
deputado Carlos Sampaio, um dos responsáveis pela área jurídica da
campanha de Aécio, dirigiu-se a Vaccari em tom de ameaça: "O
senhor tem tudo para ser preso e o PT para ser extinto". (Na
semana seguinte ao depoimento, Vaccari seria conduzido a Curitiba,
onde se encontra preso até hoje).
Ninguém
deve ter direitos sonegados em função dos erros que comete. Se
fosse assim, a Justiça não precisaria ser aplicada a delinquentes
nem a criminosos -- apenas a anjos. Trata-se, aqui, de uma tragédia
política.
Ao
recusar as regras de um jogo que terminou num resultado desfavorável
nas urnas, Aécio foi um dos principais responsáveis pela criação
do atual ambiente de intolerância política, cuja origem foi
considerar uma derrota eleitoral -- contingencia de toda disputa
democrática -- como um evento inaceitável. Ajudou a criar um
vale tudo que dispensa regras e acordos que devem valer para todos, a
começar pela noção que fundamenta toda democracia -- a compreensão
necessária de que a soberania popular, expressa pela vontade das
urnas, é o fundamento da vida em sociedade. Aécio reintroduziu no
país a noção perniciosa da democracia de conveniência, aquela que
só interessa quando permite a vitória dos amigos e aliados.
*
Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília. É também autor
do livro "A Outra História do Mensalão". Foi
correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na
VEJA, IstoÉ e Época. Também escreveu "A Mulher que Era o
General da Casa".
Nenhum comentário:
Postar um comentário