Quando a felicidade não é
possível
* Por
Anna Lee
Melodia (Da Ópera de
Orfeu e Eurídice) invade Páginas da vida. E provoca em mim
um prolongado suspiro em razão do alívio, quase uma satisfação,
que a música leva ao mundo de infortúnios criado por Manoel Carlos
para a novela das oito da Globo.
Entra em cena a bailarina
Giselle, uma adolescente de 15 anos. Certo dia, inesperadamente, ela
se depara na porta do edifício em que mora com um piano de cauda que
está sendo içado por cordas para uma das janelas. Ela pára,
admirada. Quem seria o pianista?
A resposta Giselle obtém
quando escuta uma linda música vinda da porta vizinha à sua. Como
se estivesse hipnotizada, ela persegue a melodia. A porta está
entreaberta e a menina penetra no apartamento recém-ocupado.
Fascinada, percorre o salão por entre móveis e caixotes, deixa-se
guiar pela música e, então, encontra um rapaz sentado diante do
piano. Ela não consegue ver o rosto dele, apenas os cabelos
cacheados. Ao pressentir que alguém o observa, Luciano vira e encara
Giselle. Ele tem olhos profundos e desprotegidos. O amor surge à
primeira vista.
Os dois
passam a se encontrar na casa do rapaz, quando os pais saem para
trabalhar. Luciano toca piano para Giselle dançar e assim passam
muitas tardes. Vivem um amor de poucas palavras e muito lirismo.
Melodia
continua a ressoar na novela das oito, executada por Nelson Freire.
O tema
musical cai bem ao casal. O mito grego de Orfeu e Eurídice é
uma das mais famosas histórias de amor de todos os tempos, em que o
herói – que, com a sua música, tem o poder de comover e apaziguar
os animais selvagens – desce ao inferno para recuperar a amada
morta. O inferno de Giselle é a bulimia, doença da qual sofre desde
criança, por causa da pressão da mãe que exige que ela seja magra
para se tornar uma grande bailarina. Depois de conhecer o
pianista, a menina passa a gostar de balé e talvez tenha um futuro
brilhante.
Giselle e Luciano estão
apaixonados. Passam horas e mais horas juntos. Quase não se falam,
mas entreolham-se demoradamente. Passeiam pelo Leblon de mãos dadas.
Andam de bicicleta pela Lagoa. Ao fundo, Melodia ainda ressoa.
De
repente, os dois adolescentes são abordados por bandidos. Luciano é
filho de uma procuradora da República
sempre envolvida com processos e denúncias contra criminosos, que
agora querem se vingar atingindo o rapaz. Vida real. Páginas da
vida. Luciano se assusta. Manda a namorada fugir. Os dois correm de
bicicleta desesperadamente. Giselle atravessa uma rua, um carro vem
em sua direção, ela não vê e é atropelada.
Não há
mais clima para Melodia. Não
há felicidade possível na novela de Manoel Carlos, que parece
convicto de que toda grande obra é feita com a gestação da
dor. Dor essa que ele deixa refletir nas suas páginas da vida.
Impressiona
o panorama que Manoel Carlos traça da calamidade que é ser humano:
o namorado abandona a namorada grávida de gêmeos; a mãe rejeita a
filha grávida; a avó dá como morta a neta que tem síndrome de
Down; o alcoólatra é deixado pela mulher e transforma a vida da
filha num inferno; a freira se culpa pelo passado e se pune
ajoelhando-se em pedras... Em Páginas
da Vida há traição; ambição;
casamentos desfeitos; inveja, ira; luxúria; avareza... Nenhum
personagem de Manoel Carlos é feliz, não importa a crença, a raça,
a condição social ou o caráter. Todos sofrem. Giselle e Luciano
não resistiram. Foram separados. O pianista foi passar uns tempos em
Petrópolis. A bailarina chora. Temo que Melodia
nunca mais me faça suspirar.
-
Texto publicado na Revista Flash
*Jornalista, mestranda em
Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O
Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre
outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e
nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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