O doce sabor da ilusão
* Por Vanessa Aragão
Ele
batia, batia, batia. Quanto mais pensava em parar, vinha-lhe uma
força brutal. Sofria com o descontrole. Murmuravam os curiosos.
Muitas perguntas ecoavam naquela tarde, no cubículo onde
trabalhavam. Exalava uma ressaca moral.
Na cinzenta
pia de mármore, os ingredientes corriqueiros, do dia-a-dia. Não
havia magia, encantamento, em seus preparos, como muitos imaginavam.
O toque especial vinha das entranhas. Da raiva sufocada, desmedida. A
classe alta, triste e infeliz em seus vazios, deleitava-se com o
rancor que ela mesma produzira.
Batia
ao pensar nas mulheres perfumadas e bem tratadas, que não o
enxergavam. Batia ao lembrar do esbelto senhor de terno riscado que
se contorcia ao dividir com ele o mesmo espaço do elevador.
Amassava. De um lado ao outro imaginava adolescentes rebeldes
correndo, feitos otários, atrás de suas bolas de futebol
importadas. Suavam como os meninos descalços dos terrenos baldios do
subúrbio.
Com
a massa no ponto, dirigia-se ao forno. Nesse momento, o sorriso
rasgava o rosto marcado pelas intempéries dos 30 anos. Dizem que
negro envelhece mais tarde. Ou era mentira, ou tinha alma de branco.
O labor estava nos contornos dos lábios, no franzido da testa, no
canto dos olhos.
O
cozimento. Ali, naquele momento, metáfora de vida, expurgava sua
exclusão. De alma limpa, rosto suado, respirava aliviado pela
punição. Sim. Eles pagavam. Não os altos impostos que desapareciam
nas mãos dos governantes, mas os olhares alienados.
Servidos
em belas bandejas, mal sabiam a fonte dos seus prazeres. Eram algozes
de si mesmos. E era essa crença numa antropofagia velada, que o
mantinha alerta, atento, acordado, vivendo amparado na esperança em
si mesmo.
*
Vanessa Aragão
é
jornalista, com pós-graduação
em literatura e cultura brasileira, e vive se reescrevendo em
www.palimpsestos.com
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