Dona Lavínia e o Gino
* Por
Urda Alice Klueger
(Excerto do livro “No
tempo da Ana Bugra”, publicado em 2016)
Quando o meu pai e o
seu sócio desfizeram os negócios, na Praia de Camboriú, ele logo veio para Blumenau
para recomeçar a trabalhar no velho emprego e arranjar casa para nós, e a minha
mãe com suas crianças moramos algum tempo na Vila Real, Camboriú, na casa da
dona Lavínia, antiga cozinheira do nosso restaurante. Penso agora que nunca
soube o sobrenome da dona Lavínia, embora tivesse continuado a visitá-la pela
vida afora, até muito próximo da sua morte, e me lembrar dela como alguém que
fazia comidas deliciosíssimas, como uma carne assada de panela que comi na casa
dela muito pouco antes de ela vir a falecer. Maga da cozinha, dona Lavínia
também ficou na minha memória como uma mulher de grande coragem, por dois
motivos: um deles era a falta de respeito que ela tinha para com as religiões
africanas que existem no Brasil: viúva, com diversos filhos para criar,
enquanto caminhava, de manhã cedo, pela Praia de Camboriú, para vir trabalhar,
encontrava belas oferendas feitas aos orixás africanos, e não tinha a menor
dúvida: ensacava as galinhas assadas ou outros quitutes que houvessem sido
deixados nos lugares das cerimônias noturnas, e sem nenhum constrangimento
levava aquelas iguarias para os jantares com os seus filhos.
A outra coisa que me
suscitava admiração era a sua coragem diante das águas. Enquanto estivemos
morando na casa dela, ela resolveu fazer uma cerca nova, e para tal precisava
de bambus novos, muitas canoas cheias de bons bambus novos. Então, nas manhãs,
munida de um facão, ela entrava numa canoa ancorada no rio próximo, e remava
para algum lugar remoto onde havia grandes bambuais à beira do rio. Voltava nas
tardes com a canoa chapada de feixes de bambu, e depois que houve bambus
suficientes, ela refez toda a cerca em torno da sua propriedade, uma coisa que
me impressionou deveras.
Nesse tempo em que
moramos na casa da dona Lavínia, o meu pai vinha nos ver nos seus dias de
folga, e era uma alegria muito grande escutar a sua chegada, vê-lo de novo com
a gente! Estava difícil conseguir uma casa – essas coisas de falta de moradias
no terceiro mundo, pelo jeito, são endêmicas. Então um dia ele veio dizendo que
o nosso tio Júlio Klueger estava nos cedendo para morar a antiga casa do seu
boleeiro. Tio Júlio, dono de vistosa parelha de cavalos, que lembro, marrons,
tinha um “carro de mola na praça”, o que equivale a dizer que tinha um
antepassado de um táxi puxado a cavalo, e assim como os táxis de hoje precisam
de motoristas, os carros de mola precisavam de boleeiros para guiá-los. Então,
num certo pedaço de terra do tio Júlio, havia uma casinha onde tradicionalmente
morava um boleeiro dele com sua família. Penso, agora, que aquela casinha
estava vazia porque tio Júlio deixara de ter o carro “na praça”, mas não tenho
certeza. Também não sei quem foi o último boleeiro que ocupou aquela casa – mas
tenho lembrança de um boleeiro anterior, chamado Gino, que fazia coisas
insólitas para a nossa cabeça tacanha, como ir dormir na grama dos pastos
circundantes nas noites de grande calor.
Escrito em julho de
2010, época de grande frio.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os
quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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