Desenho sem borracha
A
nossa vida é balizada por determinados acontecimentos externos, que
nada têm a ver diretamente conosco e isso ocorre, principalmente,
quando eles coincidem com momentos pessoais, positivos ou negativos,
que se fixam em nossa lembrança. À nossa revelia, incorporam-se, de
vez, a nossas biografias, mesmo que estas jamais venham a ser
escritas. Caso o sejam, tais fatos são, invariavelmente, lembrados
por nossos biógrafos e associados àqueles episódios que nos dizem
respeito diretamente.
Por
exemplo, não consigo dissociar a destruição das torres gêmeas do
World Trade Center, em Nova York, ocorrida em 11 de setembro de 2001,
de uma ocorrência pessoal muito sofrida e angustiante. Uma semana
antes desse incrível atentado, eu havia sofrido um acidente
doméstico dos mais bestas. Tive uma queda, que resultou na “trinca”
da cabeça do fêmur da perna esquerda.
Como,
na oportunidade, eu já não era tão novinho assim, a aflição
(minha e da família) era imensa. Permaneci dois dias internado em um
hospital aqui de Campinas. Os médicos queriam fazer uma operação,
para colocar parafusos no osso fraturado e assim garantir sua
consolidação. Contudo, eu havia tido acesso às radiografias. E
estas mostravam que a trinca era muito discreta, quase que apenas um
imperceptível “risquinho” na cabeça do fêmur. Opus-me,
portanto, veementemente, a tal cirurgia.
Fizeram-me
assinar um termo de responsabilidade (o que fiz, sem susto ou
hesitação) e liberaram-me para voltar para casa. Eu teria que
permanecer por algumas semanas com peso no pé, para que o osso
ficasse no lugar correto e pudesse se consolidar sem problemas.
Avesso
a medicamentos, suportei a dor “a seco”. E garanto que não era
das mais pequenas. No dia do atentado, eu estava com a TV a cabo
ligada, logo de manhã (embora não costume, e nem possa, assistir
televisão nesse período), pois na noite anterior, o então prefeito
de Campinas, Antonio da Costa Santos, havia sido assassinado, num
caso que até hoje carece de explicações plausíveis.
A
todo o momento a TV trazia flashes do velório e das investigações
policiais. De repente, surgiu na telinha a imagem de um avião de
passageiros chocando-se, espetacularmente, contra uma das torres
gêmeas do World Trade Center. Pensei, distraído, que se tratasse de
trailler de um desses tantos filmes de catástrofe, dos quais a
imaginação dos produtores de Hollywood é fartíssima. Não tardou,
porém, para que percebesse que a ocorrência era real.
Minutos
depois, um segundo avião chocou-se com a torre que havia ficado
intacta no primeiro choque. O coração veio parar na minha boca. Fui
tomado de horror com o que estava acontecendo e com as notícias
complementares dando conta de que o Pentágono também havia sido
parcialmente destruído e de que uma nova aeronave se dirigia a
Washington, provavelmente para arrasar a Casa Branca.
O
trauma completou-se quando as duas torres gêmeas vieram abaixo, num
turbilhão de poeira e de fumaça, como se fossem frágil castelo de
cartas. Desde então, associo, em meu subconsciente, até
automaticamente, os dois fatos: a dor que sentia no momento em
decorrência da fratura e o desmoronamento do World Trade Center.
Recuperei-me
por completo do acidente sem que ficasse nenhuma seqüela. Mas sempre
que penso num desses dois fatos, o outro vem, imediatamente, à
memória. Embora sem a mínima relação um com o outro, ambos
ficaram, para sempre, associados um ao outro em minha lembrança.
Felizmente,
esse tipo de associação também ocorre com eventos positivos. Por
exemplo, recebi o sim, da minha primeira namorada (oficial), à minha
proposta de namoro, no dia exato da inauguração de Brasília, ou
seja, em 21 de abril de 1960. O fato (para mim, na época, dos mais
auspiciosos), ocorreu na Fonte Sônia, em Valinhos, onde a escola em
que estudava fazia piquenique nesse tão aprazível local. A
declaração (e o conseqüente sim) ocorreram no interior de um
barco, no qual ambos navegávamos, numa espécie de lago artificial
ali existente. Romântico, não é mesmo?
O
evento está completando, em 2017, 57 anos, assim como este momento
marcante em minha vida. Ambas as ocorrências estão indelevelmente
associadas em minhas lembranças, sem ter, contudo, a mínima relação
uma com a outra.
Brasília,
aliás, tem importância muito especial para mim. Meu saudoso pai,
que era mestre de obras, participou da epopéia que foi a sua
construção. Há, pois, muito da participação dos Bondaczuk na sua
existência. Sinto que a cidade é um pouco minha também (embora,
claro, não o seja).
Pensando
em tudo isso, concluo, como fez Millôr Fernandes (êta sujeitinho
inteligente!): “Viver é desenhar sem borracha”. E não é?!! É
verdade que não podemos apagar os erros que cometemos, os
sofrimentos que tivemos, os fracassos que nos abateram etc. Em
contrapartida, porém, ninguém pode, igualmente, suprimir, como num
passe de maligna mágica, as experiências gratificantes e
inesquecíveis pelas quais passamos, que se tornam nosso mais
precioso patrimônio pessoal enquanto tivermos um sopro que seja de
vida.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O dia 11 de abril lhe trouxe todas essas recordações. Também estava em frente a TV na hora da colisão ao WTC, o que é acontecimento raro, pois era por volta de 11 da manhã e só chego para almoçar depois de 12 h.
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