A
consciência de ser negro no Brasil
* Por
Urariano Mota
Todas
as vezes em que me debrucei sobre o tema do negro brasileiro, sempre
encontrei obstáculos. O primeiro deles é que não existem negros no
Brasil. Quero dizer, é muito mais que a sociedade fingir que os
negros não sejam a maioria nacional. É mais que fingir. Na verdade,
os negros não existem. Ou nem existimos como características
físicas de cor escura, para ser mais preciso. Em dúvida, olhem as
bancas de revistas, de jornais. Onde estão as capas com negros? Não
há. Passeiem os olhos pelos canais de televisão, pelas lideranças
empresariais, pelas direções de estatais, pelas universidades,
pelos bairros limpos e confortáveis. Ao fim da mais leve ou refinada
pesquisa, concluiremos: no Brasil, não existem negros.
Mas
apesar disso, devemos ir além das ilhas brancas do Brasil, esta
grande cidade europeia. Então passemos pelos morros, favelas,
prisões, faxineiros, operários, e, principalmente, pelos
trabalhadores de menor salário em todas as categorias. O que ocorre?
Parece que o Brasil vira negro. Apenas parece, porque não há, até
mesmo aí, uma consciência, um espelho onde o negro se veja
como tal, inclusive nos lugares onde ele é majoritário. Com a
devida exceção dos terreiros, quilombos e grupos de resistência,
negros ainda são os outros. Se perguntássemos “aqui moram
negros?”, muitos nos responderiam, incomodados, “aqui, não.
Procure na favela mais distante”.
E
por que isso se dá? Por que esse paradoxo de o Brasil ser uma das
nações mais negras sem negros? Há um ditado popular, em sua
infinita aspereza e flagra da pré-história da gente, que diz:
“pobre não gosta de pobre”. Ou em uma versão adaptada: “negro
não gosta de negro”. O que isso quer dizer? Nada mais além
do que pobres e negros não gostam do modo como vivem e são pintados
em uma construção histórica, que até parece se transmitir no
leite materno, como uma doença congênita. O que se associa à
pobreza? Ignorância, fome, doenças, espancamento, sujeira, miséria
e vergonha. E como é que alguém pode gostar de ser um infeliz
desses? Uma vez um homem do povo me corrigiu, quando eu, desejando
ter com ele uma fraternidade demagógica, lhe disse: “Nós, os
pobres...”. Ele me interrompeu: “Pobre é o diabo”.
Então,
no mesmo caminho da adaptação dos pobres, eu pergunto: quem é que
pode gostar de ser feio, sujo, miserável, perseguido, espancado,
preso, fedorento e estúpido? Pois essas são as qualidades, o
mundo imundo que aparece como o destino natural dos negros, o rosto
pintado pela exploração e atraso secular do Brasil. Esse espelho
não pode ser a face de um homem ou de uma mulher que honre a pessoa.
Por aí já se vê o longo caminho de onde viemos e do muito ainda a
ser alcançado. Um combate prático e de ideias, sem descanso ou
conciliação. E que exige, por isso mesmo, o mais prolongado estudo,
leitura e astucioso pensamento.
Creio
que, para um começo de conversa, é necessário extrair a urtiga do
mato da mistificação dos pensadores brasileiros. Mais de uma vez,
pude notar um sintoma da barbárie nacional, quando vi que os
melhores relatos sobre a nossa escravidão vêm de estrangeiros, como
os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que
viveu no Recife. Ou de Maria Graham, a digna escritora que visitou
Pernambuco em 1821. Cito as palavras da inglesa:
“Os
cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi um que
arrastava o braço de um negro de sob algumas polegadas de areia, que
o senhor havia feito atirar sobre os seus restos. É nesta praia que
a medida dos insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo.
Quando um negro morre, seus companheiros colocam-no numa tábua,
carregam-no para a praia onde, abaixo do nível da maré-cheia,
espalham um pouco de areia sobre ele”.
Mas
na perigosa escrita de Gilberto Freyre o mesmo quadro se conta assim:
“Foi
numa praia perto de Olinda que Maria Graham, voltando a cavalo da
velha cidade para o Recife, viu um cachorro profanando o corpo de um
negro mal enterrado pelo dono. Isto, em 1821. Olinda pareceu à
inglesa extremamente bela vista do istmo e da praia pela qual, indo
do Recife, chegou até ao pé dos montes da primeira capital
pernambucana”.
Vocês
viram: o horror ocupa uma só linha em Gilberto Freyre, perdida na
bela vista de Olinda. Quem quiser, confira, essa ocultação do real,
está em sua Olinda, Guia Prático, Histórico e Sentimental de uma
Cidade.
Gilberto
Freyre é, seguramente, o homem que glorifica a colonização
portuguesa. E nesse caso, tão brasileiro, pela dissolução da
crueldade com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo e um
costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. Nesse
caso particular, é preciso vencer Gilberto Freyre. O poder da prosa
de Gilberto Freyre, a bruxaria do que escreveu nos muitos trechos em
que sacrifica a verdade para não perder o ritmo de um parágrafo,
esse poder e esse feitiço têm que ser mortos. Mas antes, ele deve
ser muito estudado. Contraditoriamente, antes de vencê-lo, Gilberto
Freyre há que ser assimilado. Para mais adiante ser descomido,
superado em uma etapa necessária rumo ao lugar onde a verdade da
nossa história seja soberana. E se faça um acerto de contas com o
passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande, que
continua viva entre os brasileiros.
Darcy
Ribeiro já observou que entre nós a solução do negro se deslocou
da raça para a cor. São suas palavras, num enfrentamento com a
democracia racial pintada por Gilberto Freyre, sem lhe citar o nome:
“O
preconceito nosso é por natureza diferente do preconceito americano.
Aqui há um conceito curioso de branquização, o negro quando vai
ficando claro, a mestiçagem facilita isso sobretudo quando vai
ficando rico, fica branco. Esse preconceito de branquização é um
conceito bonito, não é democracia racial. É branquização, é uma
possibilidade até preconceituosa de que o negro é aceito como
alguém que vai deixar de ser negro, que vai transar com todas as
brancas que vão clarear os filhos deles.”
Segundo
o mesmo Darcy, até o ano de 1850 cerca de 6 milhões de negros
haviam entrado no Brasil como escravos. No mesmo período, os
imigrantes brancos não passavam de 500 mil, e os índios, de 5
milhões de pessoas. É muito estranho, para dizer o mínimo, que um
país com essa composição de raças pudesse se tornar um país
branco, nas relações com o mundo exterior, que não se engana. Mas
o que se deu? Carregamos nas costas, como um peso vivo, que nos
oprime a todos, a colonização portuguesa e a sociedade de classes.
Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes, mas a democracia não nos
alcança como povo, nem como a nossa própria imagem. Há uma
sobrevivência ideológica, de pensamento racista e excludente, que
vai das Escolas Militares às instituições civis. Nós até
admitimos que o Brasil seja produto de três raças. Mas – e esse
“mas” é tudo – com a parte negra em seu devido lugar. Lá na
cozinha, longe da sala de visitas. Não venha ele manchar com a sua
presença a imagem do Brasil.
É
preciso todos os dias acordar e arregalar bem os olhos para ver o que
a névoa ideológica não deixa. Isto é, o que mais causa espanto:
onde estão os generais, almirantes e brigadeiros negros? Onde estão
os reitores, presidentes de senado, da câmara, governadores negros?
Onde estão as nossas misses e modelos de exportação negras? Onde
estão, de modo mais sério, os nossos grandes físicos e cientistas
negros?
Essas
não são perguntas retóricas. Entendam, porque até os mulatos que
pularam a cerca e o cerco da exclusão no Brasil, em um trabalho
extraordinário, heroico e colossal de autoeducação, como foi o
caso de Machado de Assis, viraram brancos. Vocês lembram, não
faz muito um anúncio da Caixa Econômica Federal exibiu um Machado
de Assis ariano, bem distante do queimadinho de sol. Mas não só ele
atesta a nossa glória de nação europeia. Olhem, por exemplo, as
imagens que viraram ícones de Carlos Gomes, de Castro Alves, ou num
exemplo menos ilustre, de Roberto Marinho. Veem? Viraram todos
brancos, ou quase brancos.
Haveria
muito ainda a falar. Mas para o dia 20 de novembro, dia da
consciência negra, que assinala a morte do grande Zumbi dos
Palmares, destaco o ocorrido com o seu nome, no bairro do Zumbi no
Recife. Quando pesquisei para o Dicionário Amoroso do Recife, pude
ver que na língua portuguesa o nome Zumbi significa alma que
vagueia a horas mortas, ou fantasma de animal morto, ou com o sentido
último de ser o título do chefe de um quilombo, zambi. Estranho,
não? Ou melhor, faz um sentido histórico, porque alma de
assombração ou fantasma de animal morto lembra mais uma vingança
póstuma contra um herói na luta contra a escravidão.
E
quanto ao bairro? O Zumbi, no Recife, foi o Engenho de Ambrósio
Machado, lugar de cultivo de cana no trabalho escravo, desde a
dominação holandesa. O sociólogo e jornalista José Amaro Correia,
assim me informou, lembrando o bairro onde ele morou na infância:
“Diziam para as crianças: ‘Zumbi vai te pegar’. O medo que
havia nos senhores de engenho foi transferido para os explorados. O
explorado repetia à sua maneira a consciência do explorador. Até
os meus 14 anos de idade, para mim e para todos os meninos, Zumbi não
era coisa boa. Esse nome era associado ao bairro. Para as pessoas de
fora, nós dizíamos que morávamos na Madalena. Nos anos 50, ainda
falavam para as crianças que Zumbi ia voltar, como se fosse uma
ameaça. Era o comentário, era o aviso na infância: ‘Zumbi vai
voltar’. As mães do bairro diziam para os filhos: ‘não volte
tarde, porque Zumbi pode te pegar’”.
Assim
pude ver a origem histórica do bairro e do seu nome. De lugar de
escravos, de terras de senhor de engenho, a lugar onde voltaria
Zumbi, desta vez como uma ameaça aos proprietários, e para os
descendentes dos explorados, até hoje, como uma assombração, no
registro dos dicionários. Que deveria receber um novo significado,
que a consciência do novo tempo nos ensina. Deixo a sugestão para
atualizar o verbete nos dicionários:
Zumbi,
substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara
coragem, que se levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de
novembro, deu origem ao dia da consciência negra.
*
Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no
Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de
Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom
Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Questão de ponto de vista, o nome de Zumbi. Quanto a cor da pele, o IBGE manda a gente olhar para a pele dos braços e dizer que cor é. Eu digo: parda. Mas outro que me ouve diz que sou branca, cor que tem em meu registro de nascimento feito pelo meu pai, também pardo, filho de mãe mulata e avô negro.
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