Réplica de classe
A imortalidade – não a física,
evidentemente, que nos é vedada, mas a como é compreendida pelas pessoas
lúcidas e inteligentes, ou seja, a do nome e das obras que lhe sejam associadas
– é a máxima aspiração dos indivíduos produtivos e, sobretudo, criativos, mesmo
que não admitam. Quase ninguém admite. A minha, porém, confesso, é.
Fico aflito somente em pensar que,
poucos dias após a minha morte, o que fui, fiz e pensei pode acabar esquecido
até mesmo pelos meus descendentes mais diretos (já nem digo os amigos e demais
parentes). E que, ao cabo de escassos anos (se não irrisórios meses ou até
dias), não reste o menor vestígio de que um dia amei, odiei, tive saudades,
errei, acertei e, em suma, passei pela
Terra e vivi.
Essa imortalidade, todavia, é muito
caprichosa. Pessoas que foram especiais e deixaram obras magníficas (não
importa de que natureza), dignas de reverência e de registro, foram “atropeladas”
pelas circunstâncias e acabaram esquecidas para sempre. E outras, que em toda a
vida praticaram um único ato que valeu a pena registrar (disseram algo de
original, fizeram alguma coisa de excepcional ou nem isso, ou seja, foram
apenas exóticas, quando não patéticas), tiveram seus nomes inscritos, para
sempre, na História e são citadas, geração após geração (com seus feitos
distorcidos e em geral aumentados, de uma época para outra). A memória dos
povos é assim: pífia, banal e quase sempre injusta.
Por exemplo, alguém sabe quem foi a
pessoa que pela primeira vez inventou um alfabeto (qualquer deles) e que
desenvolveu uma forma, mesmo que rudimentar, de registrar idéias por escrito,
de maneira coerente e inteligível? Claro que não!
Mas essa foi uma invenção que
revolucionou a História. Lançou as bases do que entendemos como civilização. E
quem teve a idéia de inventar o símbolo “zero”, para “quantificar” o nada? Isso,
para não indagar quem inventou a roda, quem pela primeira vez aprendeu a
produzir o fogo e quem teve a intuição de lançar, antes de qualquer outro,
sementes de plantas à terra e teve paciência de esperar os resultados, criando,
dessa maneira, a agricultura.
Como se vê, a memória dos povos nem
sempre (ou quase nunca) é justa. Todavia, de malucos empedernidos, de tiranos,
de genocidas, de pilantras de toda a sorte, as páginas da História estão
abarrotadas. Estes é que deveriam ser esquecidos para todo o sempre, mas não
são. É verdade que temos sábios e santos, artistas e artesãos que lograram
obter esse tipo de imortalidade. Mas a desproporção é imensa em relação aos
paranóicos, aos verdugos, aos guerreiros que semearam morte e terror por onde
passaram, aos corruptos, aos covardes etc.etc.etc.
Jorge Luiz Borges cita, no livro
“História da Eternidade”, de passagem, sem fornecer detalhes que permitam exata identificação, um
desses personagens que lograram se tornar “imortais” em decorrência de um, um
único incidente, que poderia ser relevado e esquecido, como uma infinidade de
tantos outros, por sua banalidade, mas que ganhou relevância e permanência, por
causa de uma resposta supostamente inteligente, perspicaz, irônica e,
sobretudo, elegante, a uma ofensa que sofreu.
Trata-se de um certo “Doutor Henderson”,
sobrenome bastante comum em inglês (numa consulta ao Google, este registrou, em
fração de segundos, cerca de 700 mil páginas em que é citado). Em nenhum lugar
se menciona o que fez (além de dar a mencionada resposta ao agravo que sofreu),
qual sua especialidade médica, quantos doentes curou, quantos não conseguiu
curar, quais foram seus contemporâneos célebres etc.
Ainda assim, não se tratou de um
Henderson qualquer. Este foi especial. A citação de Borges, a que me referi, é
a seguinte: “Numa discussão teológica ou literária, lançaram um copo de vinho
ao rosto de um cavalheiro. O agredido não se alterou e disse ao ofensor: ‘Isto,
senhor, é uma digressão; aguardo seu argumento’. (O protagonista dessa réplica,
um tal doutor Henderson, faleceu em Oxford por volta de 1787, sem deixar-nos
nenhuma lembrança a não ser essas exatas palavras: suficiente e bela
imortalidade)”.
As referências que o caracterizam são o
ano e o local do seu falecimento. Esses pequenos detalhes, porém, são
suficientes para identificá-lo com razoável precisão. Afinal, apesar desse
sobrenome ser (como ressaltei) bastante comum, não devem haver tantos Hendersons
falecidos em 1787 e em Oxford, na Inglaterra. Se houver mais de um, já será
enorme coincidência.
Ademais, provavelmente sua resposta nem
foi da forma com que passou à História. Deve ter sofrido cortes e acréscimos
nesses dois séculos e 21 anos após haver sido dada (afinal, “quem conta um
conto...”). Alguém deve ter testemunhado e registrado a altercação e o
respectivo contraponto, caso contrário não haveria a referência. Além disso,
nosso quase ilustre personagem contou com a sorte de encontrar um escritor originalíssimo
e perspicaz, como Jorge Luiz Borges, que em alguma fonte (que o escritor
argentino não revelou qual era), encontrou essa referência e... a imortalizou.
E pronto! O tal do Doutor Henderson
deixou de ser um anônimo “ad aeternum”, para se tornar relativa “celebridade”.
É assim que funciona essa tal de “imortalidade” que tanto buscamos: ao sabor
apenas dos caprichos do acaso e das circunstâncias. Como nos iludimos com o
futuro!
Boa leitura!
O Editor.
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Quando os filhos morrem, os túmulos que recebiam uma limpeza e manutenção pelo menos na véspera do Dia d Finados, fica definitivamente abandonado.
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