O
livro de Ñasaindy Barrett de Araújo, a filha de Soledad Barrett
* Por
Urariano Mota
Quando maio chegar, o
Brasil vai conhecer a poesia da filha de Soledad Barrett, a guerrilheira
assassinada no Recife sob a ditadura Médici. Lançado pela Editora Mondrongo, o
livro de Ñasaindy Barrett de Araújo tem um nome que sugere a difícil luta da
dignidade todos os dias: “Do que foi pra ser Agora”. Para ele, pude escrever a
apresentação que divulgo a seguir.
Poesia e Vida,
Chamo a atenção do
leitor para o caráter estético e político do livro “Do que foi pra ser Agora”.
Primeiro, porque é
impossível não falar que sua autora Ñasaindy Barrett de Araújo é a única filha
de Soledad Barrett. Filha amada pela guerreira de quatro povos, como a chamava
o grande poeta Mario Benedetti. E acrescento: o caráter literário e político do
livro se dá não só pelas condições de vida e morte da guerreira paraguaia,
assassinada pela ditadura no Recife. Mas pela própria vida de sua filha
poetisa.
Ñasaindy nasceu em
Cuba, por força da militância política dos pais, Soledad Barrett Viedma,
paraguaia, e José Maria Ferreira de Araújo, brasileiro, engajados na luta
contra a ditadura militar na América do Sul. Ambos foram assassinados pela
repressão no Brasil. Ele em 1970, em São Paulo após ser preso e torturado. E
ela em 1973, no Recife, delatada pelo companheiro, o militante infiltrado, Cabo
Anselmo.
No primeiro registro
civil da autora, ela se chamava Ñasaindy Sosa del Sol, dos sobrenomes que seus
pais usavam naqueles dias. Eram regras de segurança na época. E assim, Ñasaindy
Sosa del Sol foi chamada durante a primeira infância. Chegou ao Brasil em 1980,
com 11 anos de idade. E viveu entre o choque das diferenças culturais e
políticas, mais as dificuldades encontradas por não ter documentos até os 26
anos de idade.
Entendam. Esse curto
recorte biográfico é necessário, porque a poesia é mais que o poema, sempre. A
vida foi presenteada a Ñasaindy como um destino inescapável, como um fruto
complexo da sua genética, personalidade e formação. Pois Ñasaindy Barrett de
Araújo é a filha do tempo, dos anos mais difíceis da ditadura. E de tal modo,
que fazem a poetisa se perguntar numa poética irônica, numa pergunta que é
também de todo jovem destes dias:
“E o chip, dentro de
nós.
Quem foi que
implantou?
O que me faz sonhar?
O que me faz chorar?”
Assim posto, chegamos
à hora da poesia pelos poemas, somente pelos poemas, se tal arbitrariedade é
possível. Mas tentemos a proeza. Tento e fico a meio caminho, porque a poesia
de Ñasaindy nos fala:
“Os homens ainda amam
mesmo na angústia e na
dor”.
Não é verdade? Pois de
quanta dor, impureza e anormalidade se faz o mais límpido lírio dos campos? E
se queremos ficar no reino do poético porque poético só poético, acompanhem a
poesia linda, madura e fina que há nestes versos
“Percorre induzida a
borboleta seu percurso.
Encontra-se pousando
em uma hortênsia azul”.
E não resisto, ao fim,
de comparar uma sensibilidade poética que descende em linha direta do que li
antes, quando pesquisava sobre a heroína de quatro povos, que recriei em meu
livro “Soledad no Recife”. Acompanhem este documento, estes versos escritos por
Soledad Barrett:
“Madre, no te apenes
si no vuelvo
me encontrarás en cada
muchacha de pueblo
de este pueblo, de
aquel, de aquel otro
del más acá, del más
allá
talvez cruce los
mares, las sierras
las cárceles, los
cielos
pero, Madre, yo te
aseguro,
que sí me encontrarás!
A primeira vez em que
li o belo e último poema de Soledad Barrett, escrevi: “Agora vocês entendem a
estética que é uma ética e uma profecia em um só poema. A vida que veio depois
mostrou esse poema como uma canção de despedida”. Fui precipitado. A canção de
Soledad que se tornou impossível de ser desenvolvida, ressurge no livro de sua
filha. De modo particular, podemos dizer que existe uma alma semelhante à
estética de Soledad na poesia de Ñãsaindy. Olhem estes versos do livro e o que
suas linhas lembram:
“Entre todas as
gentes,
sei que tenho um
irmão.
E é porque sinto suas
dores,
que mesmo sem ter
olhos alegres,
mesmo sem ver a
verdade ausente
sei que a luz está
presente”.
Enfim, “Do que foi pra
ser agora” é mais que um livro. Ele é um acontecimento de importância social,
uma ordem da vida e renascimento. Como tão bem está escrito em uma de suas
páginas: “A chuva caiu tão bela quanto foi a sua espera”. Assim é o livro da
filha de Soledad Barrett. Na poesia ela alcançou o próprio nome: Ñasaindy
Barrett de Araújo, poeta. Toda a gente do Brasil tem que conhecer.
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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