Enxergando
"além" do real
Os escritores em geral e os poetas em
particular têm uma visão mais aguçada do futuro do que as pessoas (digamos) “comuns”.
Ao contrário da idéia geral que se faz desses artífices da palavra, seres
inspirados, "cúmplices dos deuses", eles não estão alheios à
realidade que os cerca. Muito pelo contrário. Em virtude de um dom natural de
que são dotados, conseguem enxergar muito além do real, projetando a realidade
para adiante, muito adiante do seu tempo.
Assim foi, como tantos outros, o
mineiríssimo Carlos Drummond de Andrade. Poucas pessoas no Brasil conseguiram ver com
tanta agudeza os problemas sociais que afetavam (e afetam mais do que nunca) nossa
população, como ele. Os contrastes que nos caracterizam, as contradições que
nos dominam, o nosso jeito peculiar, um tanto moleque de ser, que tem facetas
boas e ruins, jamais escaparam da sua aguçada "visão de raio x".
Drummond sempre foi tido como um
sujeito sisudo, de poucas palavras, duro como o minério de ferro da sua Itabira
natal. Mas por trás daquela carapaça de severidade, havia um coração brando e
terno. Atuava um cérebro preocupado com os desajustes sociais deste país que
ele tanto amava. Era lúcido em suas observações. Era objetivo em suas
colocações. E era, sobretudo, humano na avaliação das fraquezas, próprias e
alheias.
Isto é característico dos poetas, dos
escritores em geral, videntes por excelência. Afinal, ao contrário do que se
imagina, são eles que usufruem plenamente da existência. O iluminado autor de
"Recherches du temps perdu", o imortal Marcel Proust, escreveu, a propósito: "A verdadeira vida, a vida
enfim descoberta e esclarecida, a única vida por conseguinte realmente vivida,
é a literatura".
Mas a arte de sonhar, de elucubrar, de
gerar imagens mediante o uso do instrumento da palavra, tem um sentido
essencialmente prático, embora não pareça. Quem constatou isso foi o
"pai" das viagens espaciais, o russo Konstantin Tsiolkowski, um dos
primeiros homens a acreditarem realmente que o ser humano poderia viajar no
espaço, antes mesmo da invenção do avião, e que desenvolveu toda uma teoria
acerca de como isso seria possível. Afirmou: "A princípio, surge a idéia,
a fantasia, o conto. Depois deles, o cálculo científico. E então, os homens
práticos tornam a idéia real".
Num país como o nosso, virtualmente sem
memória, nunca é demais, portanto, a lembrança do nosso poeta maior. Até para
que, no futuro, os que vierem a falar dele (e oxalá falem, de fato), se lembrem
de seus poemas magistrais, de seus saborosos contos e de suas crônicas de
refinado humor publicadas nos mais importantes jornais brasileiros e não digam,
somente, que se tratou do homem que emprestou a sua imagem para a efígie
estampada na efêmera cédula de NCz$ 50,00, lançada em um dos tantos e
fracassados planos econômicos destinados a conter um processo
hiperinflacionário que parecia incontrolável, que circulou entre 17 de março de
1989 e 30 de setembro de 1992 e que a imensa maioria dos brasileiros sequer
sabe que existiu.
Que Drummond seja lembrado, em um
século vindouro, ou, quem sabe, em um próximo milênio (supondo que a Terra e
seus habitantes ainda existam e que não tenham sido destruídos e que haja,
sobretudo, um Brasil, e que seja melhor do que este atual, com um povo mais
generoso e feliz), por exemplo, por poemas como este “Nota social” (entre
centenas de tantos outros que ele nos legou):
“O
trem chega na estação.
O
poeta desembarca.
O
poeta toma um auto.
O
poeta vai para o hotel.
E
enquanto ele faz isso
como
qualquer homem da Terra,
uma
ovação o persegue
feito
vaia.
Bandeirolas
abrem
alas.
Bandas
de música. Foguetes.
Discursos.
Povo de chapéu de palha.
Máquinas
fotográficas assestadas.
Automóveis
imóveis.
Bravos...
O
poeta está melancólico.
Numa
árvore do passeio público
(melhoramento
da atual administração)
árvore
gorda, prisioneira
de
anúncios coloridos,
árvore
banal, árvore que ninguém vê,
canta
uma cigarra.
Canta
uma cigarra que ninguém aplaude.
Canta,
no sol danado.
O
poeta entra no elevador,
o
poeta sobe,
o
poeta fecha-se no quarto.
O
poeta está melancólico”.
Lindo, não é verdade? Simples e belo!
Essa é a forma justa, eficaz e sábia de reverenciar a genialidade de nosso
poeta maior. Ou seja, não permitindo que sua obra se perca irreversivelmente no
tempo, mas que sobreviva ao tempo e ao esquecimento como patrimônio artístico e
cultural de um povo que ele tanto amou. Pois como ele próprio escreveu, talvez
prevendo ser esquecido: “O poeta está melancólico...” Pudera!
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Estou alegre em ler sobre Drummond.
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