De uma mente a outra
A atividade literária – como ademais a
dos artistas de todas as outras artes – tem sido contestada por alguns, que se
dizem “práticos e objetivos”, e que, por isso, a encaram como algo supérfluo,
como uma grande inutilidade, sem a qual as sociedades seguiriam, normalmente,
seu curso, sem que sentissem grande falta ou até nenhuma. Discordo! Claro que
sou suspeito para opinar, porquanto sou escritor e, portanto, engajado à
Literatura, que para mim é mais do que paixão: transformou-se em obsessão.
Encarando a questão, porém, por um
ponto de vista bem pragmático, posso, perfeitamente, passar sem ela. Não
haverei de morrer de fome se algum dia resolver deixar de escrever e se
destruir tudo o que já escrevi. Aliás, as letras nunca contribuíram para o meu
sustento material e nem o da minha família. Ganhei pouquíssimo dinheiro com elas
e (desconfio) gastei muito mais do que arrecadei com esse capricho pessoal, ao
longo de quatro décadas de produção.
Minha necessidade de escrever (pelo
menos textos considerados “literários”, portanto não me refiro aos de caráter
jornalístico e nem aos “comerciais” ou filosóficos) não é profissional, no
sentido em que esta palavra é interpretada. É, todavia, mais profunda. É
espiritual! É a forma que conheço de detectar no subconsciente, de ordenar e de
transmitir idéias, observações e sentimentos, à minha maneira, a um número
incontável de pessoas, cuja maioria sequer conheço e certamente jamais irei
conhecer. É meu testemunho rigorosamente pessoal sobre como interpreto essa
misteriosa e magnífica aventura que é viver.
Qual, pois, a utilidade das artes e,
notadamente, da Literatura? Os supostos “práticos e objetivos”, rotulados pelo
“anjo pornográfico”, Nelson Rodrigues, de “idiotas da objetividade” (Affonso
Romano de Sant’Anna escreveu instigante poema com este mesmo título), entendem
que, rigorosamente, não é nenhuma. Alguns ainda fazem uma certa concessão e
acham que, desde que bem vendida, ela pode render alguns cobres a quem escreve
e nada mais.
Em sentido diametralmente oposto, há os
que hipervalorizam a atividade da escrita. Defendem que o talento de escrever
representa a máxima manifestação de inteligência e sensibilidade (isso, claro,
quando os textos produzidos são, de fato, inteligentes e sensíveis. Nem todos
são). Não é também por aí. Parte-se, como se vê, de um exagero a outro e as
duas correntes estão equivocadas. Neste caso, os extremos se tocam. Conheço
pessoas inteligentíssimas e extremamente sensíveis que, no entanto, não sabem
sequer desenhar uma letra “o”, quanto mais redigir textos que reflitam
sabedoria e emoção. E nem por isso, óbvio, deixam de ser sábias e emotivas.
Há, ainda, os que preferem ficar em
cima do muro. Admitem que a literatura “pode”, sim, ter grande utilidade prática,
mas condicionam-na ao engajamento dos escritores em alguma causa nobre e
moralmente defensável. Ou seja, querem que o talento da escrita seja,
sobretudo, didático, quando não uma espécie de instrumento de propaganda, para
transmitir e consolidar valores.
Estes apenas consideram a atividade
literária válida se defender, por exemplo, direitos espezinhados por tiranos.
Ou se denunciar opressões e opressores. Ou se difundir valores fundamentais,
como solidariedade, justiça, fraternidade e verdade e tantos e tantos outros.
Confundem-na, portanto, com jornalismo ou algo que o valha.
Não nego que o escritor possa, até, se
prestar a tudo isso. Mas jamais por obrigação! Aliás, sou visceralmente avesso
a qualquer tipo de imposição, seja de quem for e do que for. Isso tudo não pode
e nem deve ser colocado, portanto, como objetivo “sine qua non” da Literatura.
Não o é!
Defendo uma arte absolutamente livre,
quer de regras e normas (mesmo as lingüísticas), quer de objetivos. Entendo que
esta deva ser manifestação rigorosamente espontânea, uma forma de comunicação
direta de uma determinada mente com outras tantas, não importa quantas.
O escritor, como todas as demais
pessoas, não conta (pelo menos não sempre) com certezas, virtudes e verdades.
Tem, também, como todo o mundo, dúvidas mil, incontáveis vícios, contradições e
defeitos. E para que seu texto seja pelo menos verossímil, tem, isso sim,
obrigação (consigo próprio) de expressar, mas da forma que melhor lhe aprouver,
tudo isso.
O escritor britânico Ian McEwan,
ganhador do “Book Prize” de 1998, deu o seguinte depoimento a propósito, em
entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em 12 de dezembro daquele
ano: “Ninguém duvida que as palavras são símbolos, mas o entendimento
transmitido por elas tem a própria imediatice da percepção; porque a linguagem
é um modo de transmitir o pensamento de uma mente a outra. Conhecimento adiado,
é conhecimento perdido, porque a verdade existe num presente perpétuo”.
Para mim, portanto, Literatura é a
livre transmissão de conhecimentos num “presente perpétuo”. Tanto os próprios,
ou seja, de quem a pratica, quanto os adquiridos mediante leitura, conversas,
observações etc. Este, no meu entender, é seu principal e provavelmente único
objetivo. Tudo o mais que se disser a respeito é mera “conversa para boi
dormir”.
Boa leitura!
O Editor.
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