Composto de dualidades
O “Bruxo do Cosme Velho”, Machado de
Assis, colocou, certa feita, esta declaração na boca de um de seus personagens:
“O homem é um composto de dualidades. A principal delas é a alma e o corpo; e o
próprio corpo tem um par de braços, outro de pernas, os olhos são dois, as
orelhas duas, as ventas duas. Finalmente, não há casamento sem duas pessoas”.
Como metáfora, perfeito! Mas nem tudo é
duplo no homem (tomado, aqui, genericamente, como espécie, envolvendo, portanto,
também a mulher). Alguns órgãos vitais, por exemplo, como o coração, o estômago
e o fígado, são únicos. E, principalmente, o centro de comando de tudo isso: o
cérebro.
Além disso, nem todo o casamento tem só
duas pessoas, como Machado escreveu. Nove meses após (quando não muito antes)
surge, via de regra, uma terceira, como conseqüência dessa união. E, caso esse
enlace não seja satisfatório para um dos dois (ou para ambos), pode surgir uma
outra figura, completando o indesejável “triângulo”, que é a do ou da amante.
Mas... deixa pra lá!
A dualidade maior, neste ser tão
complexo, ambíguo e contraditório, é composta por instinto e razão. O primeiro,
faz de nós um animal como outro qualquer. Temos necessidade vital de alimentos,
abrigo e vestuário (este último, até há bom tempo, era dispensável e hoje é
essencial, apenas por causa das mudanças
de hábito do “Homo Sapiens”).
A satisfação dessas necessidades
fundamentais é instintiva. Mesmo que não fôssemos racionais, agiríamos no
sentido de buscar comida para nos sustentar, casa para repousar nosso corpo e
roupa para nos aquecer e manter estável o que pode ser chamado de “calor vital”.
Ou seja, a temperatura interna de 35,5 graus centígrados, nem mais e nem menos.
Trata-se, pois, do instinto mor na escala da vida: o da sobrevivência.
Já a razão nos distingue de qualquer
outro ser vivo. Talvez não sejamos os únicos que têm noção da própria
existência e “entendem” o que são e onde estão (é possível que outros bichos
tenham essa consciência, mesmo que em grau mínimo, o que é impossível de se
comprovar ou desmentir, com absoluta segurança). Contudo, só nós podemos
alterar condições adversas do meio ambiente e torná-las favoráveis aos nossos
propósitos e necessidades.
Não dependemos mais, como nossos
primitivos ancestrais, da caça, da pesca e da coleta de frutos silvestres para
nos alimentar. Através da razão, aprendemos a prover nossas próprias fontes de
alimentos, tornando-as perenes (quase inesgotáveis), mediante a agricultura, a
pecuária e a piscicultura. É o caso típico, portanto, da razão auxiliando o
instinto.
Ademais, aprendemos como conservar e
estocar a comida. Industrializamo-la, aumentando seu aproveitamento e reduzindo
seu desperdício. Tornamo-la mais saborosa, inventando a culinária. E não foi só
em relação à alimentação que a razão auxiliou o instinto.
Aprendemos a construir os próprios
abrigos, mais seguros, salubres e confortáveis. O fogo, por sua vez, deixou de
ser mistério. Sabemos agora como “criá-lo”, na hora que nos aprouver. E para
tornar o processo mais prático, “industrializamo-lo”, inventando o fósforo e,
mais recentemente, os isqueiros a querosene e a gás. Quanto às vestimentas, não
só aprendemos a fazê-las mais confortáveis, com um tipo para cada clima, como
as sofisticamos e tornamos bonitas, mediante a moda, numa instintiva imitação
das plumagens das aves.
Como se vê, é, de novo, a razão
auxiliando o instinto. Outro ato instintivo, de que a natureza nos dotou (como
ademais a todos os seres vivos), é o da conservação da espécie, mediante a reprodução.
Nossos primitivos ancestrais buscavam, instintivamente, parceiros do sexo
oposto para copular.
Provavelmente não sabiam da importância
e do significado dessa conjunção carnal, embora o ato fosse prazeroso para
ambos. Surpreendiam-se quando, nove meses após, nascia uma criatura que em tudo
se parecia com eles. Embora seu tantinho ínfimo de inteligência fizesse com que
desconfiassem, não tinham noção exata (ou pelo menos certeza) de que o
nascimento do novo ser era conseqüência da cópula.
Com o tempo, porém, o ser humano também
“civilizou” esse instinto. Passou a denominar aquela irresistível atração que
sentia por espécimes da própria espécie, mas de sexo oposto, de “amor”. Teceu
lendas, histórias e enredos mil em torno desse sentimento que lhe tirava a
tranquilidade e o juízo enquanto não correspondido.
Desenvolveu a linguagem. Aprendeu a
identificar as distintas emoções. Nomeou-as, uma a uma, definindo suas
características. Criou metáforas, inspiradas na natureza, para tornar belo e
sublime um instinto sumamente banal entre todos os seres vivos. Nasceram,
assim, as artes e, sobretudo, a poesia.
É, Machado, você tem, mesmo, razão. O
homem, de fato, é composto de dualidades: macho-fêmea, bem e mal, razão e
instinto etc. Daí oscilar, em seu comportamento, a despeito do “verniz”
civilizatório que tão arrogantemente ostenta, mesmo em pleno século XXI do
Terceiro Milênio da Era Cristã, entre a fera bronca (que de fato é) e o
semideus (que também não deixa de ser!).
Boa leitura!
O Editor.
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Ah, esse mundo dual maravilhoso, ainda que esteja em voga entre os jovens o "poliamor".
ResponderExcluirReparo: a temperatura humana é 36,5ºC.